sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Minhas Tias - Parte V




Naquela noite eu não dormi. Tive vontade de contar tudo para Nana e meu pai, mas lembrei-me da promessa que tinha feito à minha tia Rosana. Quase não jantei, e meu pai percebeu que eu estava calada e misteriosa... quando ele me perguntou onde eu passara a tarde, disse que tinha ido ao cemitério colocar flores para minha mãe (o que era verdade) e que depois encontrara uma amiga (o que também não deixava de ser verdade). 

Na manhã seguinte, me vesti correndo e após o café da manhã, saí correndo para a casa de tia Rosana, pois ela ia começar a pintar o meu retrato. Ainda à porta de casa, ouvi quando meu pai comentou com Nana: "Essa menina deve estar de namoro..." Achei melhor que ele pensasse assim por enquanto.

Parei diante da casa onde estivera na tarde do dia anterior. Olhei para ela, envolta por uma fraca aura dourada de luz solar. Respirei fundo, e entrei. Quando ia bater à porta, minha tia abriu-a, e disse que estava me esperando. Na sala, o cavalete com a tela, e as tintas. Ela sentou-me junto à janela, onde a luz natural incidia sobre meus cabelos, puxando-lhes o brilho, como ela mesma dissera. Pediu-me que olhasse para fora, como se eu estivesse serenamente contemplando a paisagem. 

-Agora mantenha essa expressão arrebatadora que você tem, Alana... assim mesmo... 

Ela trabalhava avidamente, traçando caminhos com um lápis. Olhava para mim  e depois parecia mergulhar na tela. Eu escutava passarinhos lá fora, mas eles pareciam estar cantando em algum lugar bem distante. A luz que entrava pela janela era clara e leitosa, e o jardim estava envolto por uma névoa fininha que o sol não conseguia dissipar. Uma paisagem estranha e encantadora. 

Nem sei por quanto tempo ficamos as duas assim, em silêncio; eu, quase imóvel, não sentia cansaço, e ela, totalmente tomada pela força de sua alma de artista, os olhos resvalando de mim para a tela, da tela para mim... finalmente, ela disse:

"Por hoje chega. Você deve estar cansada!"

Neguei, aproximando-me da tela. Mas antes que eu pudesse ver o que ela pintara, tia Rosana cobriu-a com um tecido branco:

-É uma surpresa. Meus modelos jamais veem seus retratos antes de estarem terminados. E para você, a surpresa será ainda maior.

-Por que?...

-Porque você não estará sozinha nesta imagem, Alana.
-Mesmo? E quem estará me fazendo companhia?

Ela me olhou de uma maneira muito doce, e murmurou:

-Sua mãe.

Uma forte emoção tomou conta de mim, e eu me vi chorando.

-Tia Rosana, por que vocês brigaram? Por que tive que crescer sem a presença de minhas tias, e por que minha mãe era sempre tão triste? Por que?...

-Querida, a vida nem sempre toma os caminhos que traçamos para ela. A vida é independente da nossa vontade, ela é o que deseja ser, ela nos arrasta... por mais que tentemos lutar... ela é tão... imprevisível!

Notei novamente que uma sombra escureceu-lhe o verde dos olhos. De repente, ela parecia imensamente triste, e me arrependi de ter sido eu a causadora daquela tristeza. 

Ela passou a mão pelos cabelos, prendendo-os em um coque. Segurando minhas mãos, levou-me para o sofá, e nos sentamos. Eu me sentia um tanto estranha, mas não sabia o motivo. Era como se tudo aquilo não fosse real... talvez fosse a emoção... 

Tia Rosana parecia estar procurando as palavras certas, as que ela vinha guardando com muito cuidado durante todos aqueles anos em que jamais nos falamos. Mesmo assim, parecia-me que as palavras que ela entesourara para mim durante tanto tempo, agora não lhe pareciam as palavras certas, e ela hesitava. Olhou-me quase em desespero. Sustentei-lhe o olhar, pois queria respostas.

-Alana... eu fiz algo muito estúpido há alguns anos... fui tão fraca e covarde... temo ter sido a causadora de toda a dor sentida por sua mãe. Mas por favor, não me julgue, eu fiz apenas o que eu achava que era o certo para todos naquele momento, no qual eu estava tão transida de dor. Mas eu errei, e errei muito. Meu erro não pode ser perdoado, pois envolveu as vidas de muitas pessoas, inclusive, a sua. Às vezes eu me pergunto se algum dia terei paz... mas tudo foi há muito tempo, muito tempo... e agora eu acho que é muito tarde...

-Mas o que você fez de tão imperdoável, tia? Pede-me para não julgá-la, mas você julga a si mesma!

Ela sorriu-me tristemente.

-Você tem razão. Mas quando este quadro estiver terminado, você saberá de toda a verdade.
-Mas...
-Eu prometo, Alana.
-Mas por que todo esse mistério?

Comecei a ficar impaciente, e ela percebeu.

-Por favor, confie em mim. É só o que eu peço. De-me um pouco mais de tempo, e depois você entenderá tudo. 

Percebi que ela não cederia. Não diria uma só palavra sobre o que eu desejava tanto saber. Concluí que só me restava esperar. Achei que talvez ela pudesse me responder sobre minhas outras tias, Diana e Olga. Perguntei-lhe onde elas estavam. Ela respondeu que em breve nos conheceríamos. 

-E você tem contato com elas, tia?
-Eu?...

Ela levantou-se e caminhou até a janela, olhando para fora.

-Eu as vejo sempre, sempre...

Ocorreu-me uma pergunta de repente, e sem pensar muito, eu a verbalizei, embora tivesse certeza da resposta: 

-E você via minha mãe sem que ela soubesse? Você nos via?...

Ela um leve estremecimento:

-O tempo todo, Alana. O tempo todo.

Voltei para casa ainda a tempo para o almoço. E a cena que eu vi assim que entrei, tirou-me a respiração:

De pé, junto à lareira, estavam Nana, meu pai... e minha tia Olga! Todos pareciam muito tensos, e fiquei ali, observando-os, sem saber o que dizer ou como agir. 

 Reconheci-a imediatamente. Ela estava um pouco mais "cheinha" do que aparecia nas fotografias, e os cabelos, embora conservassem o tom ruivo das fotos, estavam bem mais curtos, mas eu jamais poderia não reconhecê-la após passar toda a minha infância e adolescência olhando para ela e para minhas outras tias nas fotos. Minha tia Olga era bonita, alta e parecia  mais velha que minha tia Rosana, apesar de ser a mais jovem entre as irmãs. Trajava um vestido azul-escuro que (pensei) tinha a intenção de deixá-la mais magra do que realmente era. Ela sorriu quando me viu, e eu sorri de volta.

Meu pai fez sinal para que eu me aproximasse. Ele parecia um pouco constrangido.:

-Alana... esta é sua tia Olga.

Não senti a mesma vontade de abraçá-la como se dera com tia Rosana, pois percebi que ela estava muito nervosa e que se eu a tocasse um pouco mais do que deveria, ela desabaria ali mesmo, no meio da nossa sala de estar. Mas gostei dela, assim como gostara de tia Rosana. Ela me estendeu uma mão trêmula e fria, que apertei, e vi que seus olhos estavam marejados. Nana percebeu a situação, e discretamente, retirou-se. Quando voltou, trazendo para todos copos com suco de frutas, estávamos acomodados no sofá.

Notei que meu pai olhava para tia Olga de maneira muito ansiosa toda vez que ela falava. E ela me falou de sua rede de restaurantes que ficavam espalhados no mundo quase todo: Paris, Roma, Rio, Espanha, Londres, Nova Iorque. Ela contou-me que trabalhava muito, e estava sempre viajando. "Como tia Rosana, " pensei, mas nada disse. Tia Olga era muito faladora, alegre, expansiva. Muito diferente de suas diáfanas irmãs. Logo, ela contou-me que eu tinha uma prima, sua filha Luiza, e que se eu quisesse, poderia passar umas férias com elas em Paris para que nos conhecêssemos, pois era lá que Luiza morava. 

Apesar do esforço que minha tia fazia para que aquela situação parecesse o mais normal possível - uma tia distante em visita à sua sobrinha - era impossível não notar a carga de tensão que pairava no ar. Eu nunca tinha visto meu pai suar frio na testa - e nem estava tão calor assim naquele dia. Várias vezes ele enxugou-a com seu lenço. Nana forçava sorrisos que mais pareciam caretas, fingindo servir suco em copos ainda cheios, e tia Olga, para disfarçar o nervosismo, falava, falava...

(continua...)


terça-feira, 26 de agosto de 2014

Minhas Tias - Parte IV

Frésias



Minhas Tias - Parte IV


Passamos - eu e meu pai - um ano viajando pelo mundo. Percorremos a Europa de trem, parando em cada país pelo tempo que desejássemos. às vezes chegávamos em alguma pequena e encantadora cidade, onde permanecíamos por semanas ou meses, até que decidíamos seguir em frente. Visitamos vinícolas na Itália e na França,  cruzamos continentes, mares, e muitas pontes. Livramo-nos de um jejum de silêncios que nos envolvera durante anos, dançando tango na Argentina, ouvindo música clássica em Viena, aproveitando o carnaval de Nova Orleans, dançando no México no Dia de Todos os Santos, aprendendo alguns passos de danças africanas ao som de canções tribais. Foram momentos só nossos, nos quais nem sequer tivemos tempo para chorar ou sentir saudades de mamãe, pois ambos sabíamos (mas não pronunciávamos tal heresia) que, se ela estivesse viva, estaríamos ainda relegados a deslizar no silêncio daquela casa triste.

Foram tempos realmente felizes. Mandávamos à Nana cartões postais de várias partes do mundo, que ela guardou numa caixinha de papelão fechada por uma fita coral que às vezes ornara os cabelos de minha mãe. Não tínhamos pressa. Aos dezessete anos, eu terminara a escola e de repente decidíramos sair pelo mundo naquele ano sabático.

Meu pai deixara à Nana ordens expressas para que ela trocasse cortinas, almofadas, colchas, toalhas e tapetes da casa na nossa ausência, substituindo tudo por padrões mais modernos, leves e coloridos. Também mandou que a casa fosse repintada em tonalidades alegres e aconchegantes, substituindo o bege doentio das paredes.

 Meu pai ordenou-lhe que apenas os aposentos de minha mãe fossem mantidos como estavam, talvez porque acreditasse que aquela seria uma maneira de preservar sua memória naquela casa de impedir que ela se transformasse nalguma espécie de fantasma que vagasse por ali em busca de um espaço só seu.

Quando retornamos, finalmente, e uma Nana chorosa e saudosa abriu-nos as portas da casa, Reparei nas cortinas esvoaçantes, branco-imaculadas que agitavam suas saias como se dançassem ao sabor do vento, e que substituíam as pesadas cortinas de brocado que muitas vezes impediam que entrasse luz nos cômodos. Admirei os novos padrões florais discretos dos sofás, e as almofadas coloridas sobre eles, os tapetes felpudos menores que substituíram os carpetes que encobriam o piso (que antes evitavam que os ruídos dos nossos passos não repercutissem até o quarto de minha mãe), e experimentei pisar o assoalho encerado de madeira, ouvindo, pela primeira vez, meus passos ecoando pela casa. Adorei as novas cores das paredes - cada cômodo de uma cor em tom pastel - e também minha nova colcha rosa-choque. Meu pai fizera muito bem em confiar no gosto de Nana. Havia também flores em vasos espalhadas por toda casa, e as janelas abertas deixavam entrar o perfume das flores de laranjeira que abundavam no pomar.

Retornamos para uma nova casa, e uma nova vida.

Mas senti necessidade de despedir-me, de vez, das memórias de minha mãe.

Era uma tarde de primavera, e sem nada dizer ao meu pai, dirigi-me para o cemitério a fim de visitar o túmulo de minha mãe pela última vez - estava decidida a não mais voltar lá, pois sempre ficava deprimida em cemitérios, e afinal de contas, acreditava que aqueles que se foram não estavam lá. Levava comigo um ramo de margaridas que colhera em nosso próprio jardim. A tarde estava morna, e uma fina camada de nuvens suavizava a luz do sol. Envolta em meus pensamentos, caminhei até o túmulo de minha mãe quando algo me fez estancar o passo:

Parada junto à sepultura, havia uma mulher loira trajando roupas leves e esvoaçantes, de aparência muito cara, que harmonizavam-se à claridade do dia. Fiquei observando-a durante algum tempo. Ela parecia rezar ou quem sabe, estava perdida em lembranças. Cabeça baixa, as mãos cruzadas descansando sob o queixo. Notei que havia um ramo fresco de frésias sobre a campa. Tentei lembrar-me de onde vira aquelas flores antes... logo vieram-me à memória as fotografias que eu costumava examinar quando criança; em algumas delas, junto às minhas tias, havia um canteiro de frésias.

A mulher ergueu o rosto, e apesar da passagem do tempo que pouco lhe afetara, pude reconhecer as feições de minha tia Rosana - a de cabelos loiros, muito pálida, que tornara-se uma grande pintora!

Eu queria caminhar até ela, mas meus pés pareciam fincados no solo. Meu coração descompassado não conseguia administrar aquela cena que se descortinava diante de meus olhos, e por um momento, pensei que eu dormia e que tudo não passava de um sonho. Notei que ela ainda era muito bela, apesar dos mais de vinte anos que separavam sua imagem daquela à qual eu estava acostumada a ver nas fotografias. Imediatamente, sem nem mesmo trocar qualquer palavra com ela, eu a amei. Lembrei-me de que os motivos que nos separaram durante tanto tempo  não mais existiam. Respirei fundo, mas meus pés ainda não conseguiam mover-se.

Foi naquele instante que ela virou-se devagar na minha direção, e nossos olhares se reconheceram. Ela pareceu calma e muito tranquila, como se já esperasse que aquilo acontecesse, como se tivéssemos marcado um encontro com o destino. Lembrei-me de que meu pai dissera que ela às vezes tinha premonições, conseguindo dizer de antemão o que aconteceria na vida das pessoas. Caminhamos em direção uma da outra, e quando estávamos próximas, nós paramos, nos olhando longamente. Ela sorriu, eu sorri. Ela estendeu-me seus braços, e eu me aconcheguei dentro deles.

Murmurei seu nome, como esperando uma confirmação, e ela balançou a cabeça positivamente. Sua voz era calma e muito suave:

-Você está tão bonita, Alana! Como cresceu... é uma mulher...

-Eu sempre quis conhecer você, tia Rosana. E as outras.

Uma sombra passou rapidamente sobre seu rosto, mas ela a dissipou com um sorriso:

-Eu moro perto daqui. Gostaria de vir à minha casa?

Assenti com a cabeça, e fomos caminhando pela calçada, mas antes, deixei sobre a campa de minha mãe as margaridas que trouxera. Caminhei para fora do cemitério na companhia de minha tia Rosana sem olhar para trás. O momento que eu vivia era tão esperado e tão inesperado, ao mesmo tempo...

Pensei que a casa de uma grande pintora seria exuberante, mas ao invés disso, após caminharmos por dez ou quinze minutos, ela parou em frente a um portão branco de madeira, e ao abri-lo para que entrássemos, percebi canteiros de frésias em ambos os lados do caminho que conduzia à porta de uma casa branca simples de dois andares.

Ela abriu a porta, e imediatamente eu senti que mergulhava em um ambiente de contos de fadas; tudo transpirava uma beleza austera e simples ao mesmo tempo, e o perfume suave de incensos queimando em algum cômodo me envolveu completamente. A luz do por do sol entrava pela janela aberta da sala, e seus raios coloridos por um arco-íris inesperado ia deitar-se sobre as rosas pálidas do tapete. Havia muitos quadros pelas paredes, todos eles retratando paisagens maravilhosas que pareciam não ser deste mundo, e rostos cujos olhares transmitiam uma força e uma beleza transcendentais. Quem seriam aquelas pessoas?

 Eu estava muito feliz! Era como se eu sempre tivesse frequentado aquela casa, pois sentia-me totalmente à vontade na presença dela, e naquele ambiente que parecia ter sido feito sob medida para os meus sonhos. Ao contrário de minha mãe, Tia Rosana exalava uma paz, tranquilidade, firmeza e  alegria serena que me contagiavam e faziam com que eu me sentisse absolutamente segura em sua presença.

Ela pareceu adivinhar meus pensamentos, quando eu mentalmente indaguei quem seriam seu marido e seus filhos - se ela o tinha - e ela respondeu-me, sem que eu perguntasse, que vivia ali sozinha e jamais casara-se. Sua carreira de pintora fazia com que viajasse muito, e que chegara há apenas alguns dias, mas já estava de partida marcada para dali a uma semana.

Ela sempre estivera ali, tão perto de nós!... No entanto, tão longe... era incrível que jamais tivéssemos nos encontrado. Verbalizei o meu assombro, e ela respondeu-me:

-É que fico por aqui apenas alguns dias por ano. Viajo muito, devido à minha profissão. E além disso, posso ser bastante discreta quando quero...

Ela leu em meus olhos todas as perguntas que eu guardara durante todos aqueles anos. Ela sabia que eu desejava conhecer a história de nossa família, o porquê do silêncio e da depressão de minha mãe. Mas apesar de tudo, ela apenas passou a mão suavemente sobre meu rosto (estávamos sentadas à varanda de sua casa, tomando um refresco de morango que ela acabara de preparar):

-Eu sei que você tem muitas perguntas... mas no momento, tudo o que eu queria era poder pintar o seu retrato. Posso?

Prometi que viria todos os dias posar para ela, e ela então respondeu que retardaria a sua partida para que o retrato pudesse ficar pronto. Antes que eu partisse, Tia Rosana pediu-me que não comentasse com meu pai, pelo menos por enquanto, que nós tínhamos nos encontrado. Eu despedira-me dela, e estávamos ambas paradas ao portão da casa. As primeiras estrelas já começavam a despontar num céu avermelhado. De repente, senti um medo imenso de que, assim que eu virasse as costas, ela, a casa e tudo o que havia por ali, desapareceria para sempre de minhas vistas, e deste mundo. 

Ocorreu-me subitamente que eu já passara por aquela casa várias vezes em minha vida, e jamais a notara. Sequer olhara para ela. O medo invadiu-me o coração, e olhei para ela ansiosamente, esperando que me assegurasse de que ela estaria ali na manhã seguinte. Ela apenas sorriu-me seu melhor sorriso tranquilizador. 

Despedimos-nos novamente com um abraço apertado, e quando meu afastei da casa apenas alguns  metros, olhei para trás; ela ainda estava ao portão, e acenou-me. 

Fui para casa, pensando na desculpa que teria que inventar para que meu pai não desconfiasse das minhas saídas diárias que aconteceriam nos próximos dias...


(continua...)


quinta-feira, 21 de agosto de 2014

MINHAS TIAS - Parte III




Minhas Tias - Parte III


O rosto pálido de minha mãe descansava sobre a alvura da fronha, entre o fogo de seus longos cabelos cuidadosamente arrumados em duas faixas vermelhas e sedosas que desciam sobre seus seios. Como era bela! Suas pálpebras azuladas moviam-se, e percebi que ela sonhava, e às vezes, seu rosto assumia uma expressão angustiada. Naquele momento, desejei mais que nunca, ardentemente, conhecer a história de nossa família para saber o que causava aquela angústia em minha mãe, aquele profundo estado depressivo do qual ela jamais saía por mais que algumas poucas horas de cada vez.

Os dias que se seguiram foram melancólicos, e Dr. Javier entrou e saiu de nossa casa praticamente diariamente. Mamãe mal comia, engolindo algumas colheradas de sopa ou chá com torradas, por insistência carinhosa de Nana. De todas as suas tristezas, acho que aquela fora a maior. Meu pai andava pela casa feito um zumbi, tentando concentrar-se em seu trabalho no escritório, mas eu passava pela porta entreaberta e o via sentado à sua escrivaninha, triste e pensativo.

Certa manhã, antes de ir para a escola, dei uma passada no quarto de minha mãe ( a esta altura, os leitores já devem ter percebido que meus pais não partilhavam o mesmo quarto) para despedir-me, como fazia todas as manhãs. Isto significava apenas olhá-la dormir. Mas naquela manhã, ela abriu os olhos e sorriu para mim, estendendo os braços para que eu me aconchegasse. 

-Filha querida, minha pobre e doce Alana... eu sinto muito... sinto muito por todos estes anos em que eu não pude estar presente em sua vida... sinto pelo fato de que ocupei-me muito mais com meus próprios problemas do que com os seus. Mas por favor, perdoe-me, e saiba que eu fiz o melhor que eu consegui, por você, por seu pai e por nós.

Olhei-a nos olhos, e ela chorava.

-Mamãe, eu jamais a culparia por nada nesse mundo. Eu a amo, e sinto-me amada, e para mim, é o que importa. Mas por que tem que ser assim? Por que você é assim? Por que não consegue ser feliz, mamãe? Eu tenho tanto medo...

Aquela foi a primeira vez que eu chorei perto de minha mãe.

Ela me abraçou mais forte, o mais forte que conseguiu com seus braços pálidos e fracos. beijou-me a testa, e suspirando, afastou-me dela, dizendo:

-Agora vá, minha menina. Vá para a escola. Cuide bem de sua vida. Saiba que sempre estarei com você.

Aquela frase encheu-me de preocupação e de medo. Disse que não queria ir à escola naquele dia, mas ela foi firme:

-Eu estou mandando, filha. Por favor, não me contrarie hoje. Não agora. Eu não posso... eu não... posso!...

Dizendo aquilo, ela virou-se de costas para mim na cama, e após chamá-la algumas vezes, saí. Jamais me esquecerei daquela manhã em que vi minha mãe viva pela última vez.

Ao chegar da escola, as portas da frente da casa estavam abertas, e Nana veio em minha direção, tentando impedir que eu entrasse. Empurrei-a, pois eu imediatamente percebi o que estava acontecendo ao cruzar com o olhar vermelho de meu pai, de pé no alpendre, os braços estendidos ao longo do corpo. Havia um carro preto e lustroso parado à nossa porta.  Lembro-me de ter gritado; lembro-me de Nana me abraçando forte, e dizendo "Não olhe," enquanto uma maca levava o corpo inerte de minha mãe coberto por um lençol, uma mecha vermelha de cabelo pendurada. 

Depois acordei em meu quarto, os olhares preocupados de papai e Nana sobre mim. Olhei para o lado e vi o Dr. Javier colocando medicamentos em uma maleta, e jogando fora uma seringa usada, dizendo ao meu pai, com sua voz monótona, que havia me administrado um sedativo e que eu logo estaria bem.

Mas ele estava errado: por muitos meses após a morte de minha mãe, eu jamais fiquei bem, e pior ainda eu me sentia ao ver o quanto meu pai perdia peso a olhos vistos, o quanto ele se preocupava comigo, que deixara de ir à escola e ficava o tempo todo deitada na cama, sem conseguir interagir com ninguém. Eu percebia que estava matando o que ainda restava de meu pai, mas não tinha forças para reagir. Mas foi apenas por ele que, certa manhã, reuni forças para tomar um banho, pentear os cabelos e vestir alguma coisa que não fosse uma camisola e descer para tomar o café da manhã em sua companhia. 

Encontrei-o sentado à mesa, o jornal aberto em frente ao rosto. Quando percebeu minha presença, meu pai largou o jornal e levantando-se, veio ao meu encontro, e nós nos abraçamos. Choramos todas as lágrimas que ainda nos restavam naquela manhã. E choramos copiosamente, durante muito tempo. Pareceu-me que estávamos purgando todas as nossas mágoas, não apenas pela morte de mamãe, mas também pelos anos de silêncio aos quais ela nos confinara. Choramos pelas tardes nos jardins das quais ela não participou, as apresentações dos teatrinhos da escola às quais não compareceu, as festas e eventos sociais que meu pai não frequentou por sua causa, os sentimentos de medo e de culpa a que ela nos submeteu durante todos aqueles anos; a sensação de perda era muito forte, mas maior ainda, era a sensação de desperdício. Nossas vidas tinham sido desperdiçadas até ali. 

Olhei para meu pai, e vi um homem ainda muito bonito, mas precocemente envelhecido, magoado, profundamente triste. Pareceu-me que os anos caíram de repente sobre ele, aprofundando as rugas que antes eram apenas linhas de expressão, curvando seus ombros sempre tão eretos e embranquecendo seus cabelos castanhos quase totalmente. Havia nos olhos dele (e quem sabe, nos meus) uma dor que estaria sempre ali, mas havia também, ao lado daquela dor, uma esperança que insistia em nascer, em nos trazer de volta à vida, e dizer-nos que ainda valia a pena, e que poderia valer bem mais a pena agora. 

A dor era imensa, mas ao mesmo tempo, ela nos libertara. Estávamos prontos para continuar - ou melhor, começar a viver. 

(continua...)



terça-feira, 19 de agosto de 2014

Minhas Tias - Parte II


Minhas Tias - Parte II

Meu pai era um homem bonito. Durante muito tempo eu não percebi este fato, pois para mim, ele era apenas meu pai. Também achava estranho quando escutava as professoras ou as mães de minhas amigas chamando-o por seu nome: "Rodrigo." Para mim, ele era apenas pai. E sendo apenas pai, era tudo o que eu mais amava, a presença concreta em minha vida. Sarah, minha mãe, era algo etéreo e ocasional, mágico e inalcançável como uma viagem até uma nuvem. Meu pai era o chão sólido e firme, o braço que amparava, a palavra forte e certa.

Minha mãe era a fragilidade, a excessiva sensibilidade. Vivia pisando em ovos para não feri-la ou melindrá-la, o que fazia com que ela se trancasse no quarto por dias a fio. Tinha que contar palavras perto dela. Assim, preferia admirá-la em silêncio e apenas responder ao que ela raramente me perguntava.

Jamais fiz-lhe qualquer pergunta sobre minhas tias, tanto por ordens expressas de meu pai quanto por um medo enorme de fazer com que ela se desintegrasse diante de meus olhos. 

Comecei a estudar balé clássico a pedido dela; ou melhor, nem foi um pedido formal, apenas uma menção dos tempos em que ela era jovem e dançava balé. Como ela raramente falasse de seu passado, achei que estudar balé me aproximaria mais dela. Eu não tinha o menor talento, e Mme. Margarida apenas aturava minha presença nas aulas porque tinha uma queda por meu pai - aliás, como quase toda mulher que eu conhecia.

Reparava que, nas raras vezes em que ele ia buscar-me na escola ou participar de alguma reunião de pais, as mães de minhas amigas ficavam falando sobre ele, e muitas não conseguiam tirar os olhos dele. Mme. Margarida, sempre carrancuda, sorria docemente, e seu semblante transformava-se na frente de meu pai. As minhas colegas de classe diziam que meu pai era "Um gato." 

Nana, minha eterna babá - que após eu crescer assumiu outras funções na casa e continuou sempre conosco - também parecia não ser imune aos encantos de meu pai, mas conseguia manter a linha, pois tinha grande respeito por todos nós. Mas era impossível não perceber, durante todos aqueles anos, que ela o amava platonicamente. E se havia alguma dúvida em alguém àquele respeito, ela foi completamente sanada durante o funeral de meu pai, muitos anos mais tarde.

Eu tinha apenas onze anos de idade quando comecei a perceber a masculinidade de meu pai, e a maneira como ele afetava as mulheres. Mas eu sabia que ele era completamente fiel à minha mãe, embora eu não conseguisse compreender como ele podia, já que ela nunca saía de casa e passava a maior parte do tempo trancada consigo mesma. Um homem bonito daquele, com boa situação financeira, indo sozinho a todos os lugares o tempo todo... certa vez eu quebrei a regra de jamais fazer perguntas à minha mãe e mencionei o quanto meu pai era admirado, e perguntei se ela não sentia ciúmes. Ela me olhou de uma maneira estranha e zangada, o que me fez arrepender-me imediatamente; mas ao invés de ralhar comigo, ela simplesmente soltou a rosa que estava em sua mão, deixando que esta caísse no chão, e me olhando de forma mais branda, rosto pálido e olhos magoados, ela disse:

-Prefiro não pensar em certas coisas que podem magoar e fazer sofrer, Alana. Se eu fosse você, faria  a mesma coisa.

Dizendo aquilo, ela dirigiu-se para o quarto, passando por cima da rosa, e trancou-se por mais de duas semanas. Ninguém pode imaginar o sentimento de culpa que eu carreguei por toda a minha adolescência por causa daquilo! Jamais mencionei o fato a ninguém, e creio, ela também não. 

Minhas tias ocupavam a minha imaginação e os meus sonhos. Eu muitas vezes sonhava que estava em uma espécie de vila, uma ladeira na qual havia casas enfileiradas, e cada uma delas pertencia a uma de minhas tias. A última, no alto, era de minha mãe. Eu passava pelas casas, parando para bater a cada porta, e elas abriam-nas para mim. Nada diziam, porém. Todas elas tinham vestidos leves e vaporosos como os das fadas, e me olhavam com muita ternura. O sonho repetia-se quase todas as noites. As imagens que eu via neles, eram as mesmas das fotografias, e a única diferença, é que elas se moviam. Às vezes meu pai aparecia nos meus sonhos. Eu olhava por cima dos ombros de minhas tias e conseguia vislumbrá-lo brevemente, sentado à mesa das casas. Mas sempre que eu chegava à casa de minha mãe, ele estava lá. Eu ficava intrigada com aqueles sonhos. Certa vez, contei-os à Nana, que ouviu com atenção e concluiu:

- Não dê tanta importância ao que vê em sonhos,pois sonhos são só o que são: sonhos.

Algo em seu tom de voz me fez duvidar que ela realmente acreditava naquilo que acabara de dizer. Atrevi-me:

-Nana, você conheceu minhas tias?

Ela ficou visivelmente embaraçada.

-Ora, por que a pergunta? Já não chega ficar aborrecendo seu pai com estas bobagens, Alana?
-Eu só queria saber... conheceu-as ou não?

Ela empertigou-se, ralhando comigo:

-Olhe aqui, mocinha, você sabe que este assunto não deve ser comentado dentro desta casa!
-Mas eu só queria saber se você já as viu, se esteve com elas, se ouviu as suas vozes... elas são bonitas como nas fotos, Nana? 

Ela olhou para as unhas das mãos, acho que apenas para não ter que olhar para mim:, e sua voz saiu muito melancólica

-Sim, elas são todas muito belas... 
-Por que se afastaram? Por que elas nunca nos visitam?
-Bem, esta é uma história que um dia, se seus pais assim o desejarem, eles próprios contarão para você. Não estou autorizada a falar sobre isso, e se alguém souber que estamos tendo esta conversa, serei mandada para longe desta casa para sempre! É isso que você deseja?

Abracei-a depressa. Não ter mais Nana seria insuportável para mim, pois ela substituía minha mãe em tudo naquela casa. Ela era quem tratava das coisas da escola e tomava-me as lições, cuidava da casa, das compras, supervisionava as faxineiras, Levava-me à escola e ao balé no carro a ela presenteado por meu pai.
Nunca mais tentei saber de nada através dela, pois percebi o quanto ela ficou constrangida e amedrontada.

Assim, eu vivia meus dias naquela casa sempre silenciosa e cheia de segredos de família que ninguém me contava. Cresci uma menina com pouquíssimas amigas, que raramente era convidada para festas, e quando o era, mal chegava e queria ir logo embora. Era bonita (puxara as mulheres de minha família) e alguns meninos tentavam aproximar-se de  mim, mas após eu conversar come eles, achava-os todos vazios e imaturos, e perdia o interesse. Tive apenas um namorado aos dezesseis anos, apenas porque as outras meninas insistiam que eu deveria ficar com ele. Durou apenas duas semanas, ao final das quais eu já nem sequer conseguia olhar para o pobre rapaz. 

Aos dezessete, finalmente tomei coragem e abandonei as aulas de balé clássico. Minha mãe nem sequer mencionou o assunto. Apesar de assistir a todos os vídeos das apresentações, ela nunca compareceu a nenhuma delas. Ela elogiava minha performance medíocre, mas ambas sabíamos que eu jamais me tornaria uma dançarina clássica.

Certo dia, ao chegar da escola, encontrei com um homem de branco saindo da casa. Meu pai apresentou-me rapidamente  ao Doutor Javier, que eu nem suspeitava ainda, seria frequentador assíduo de nossa casa nos próximos meses. Mamãe não estava sentindo-se muito bem, mas recusava-se a ir para um hospital.

Eu lia a preocupação e a angústia nos olhos de meu pai enquanto ele tentava tranquilizar-me:

-Não se preocupe, querida. É apenas uma leve indisposição.
-Posso ir vê-la?
-Ela está descansando, o doutor deu a ela um sedativo. Vá, mas não faça nenhum barulho, OK?

Concordei com a cabeça, e jogando o material escolar sobre o sofá, subi as escadas, apreensiva. 

(continua...)



terça-feira, 12 de agosto de 2014

Minhas Tias



 



Minhas Tias - Parte I

Desde pequena, eu sabia que minha mãe tinha três irmãs, mas que elas não se falavam há muito tempo devido a uma história misteriosa que começou apenas alguns anos depois de eu nascer. Eu as via juntas nas antigas fotografias de família, e pareciam sempre tão unidas! 

Minha mãe chamava-se Sarah -era a mais velha, e  também a mais mais bonita entre as quatro irmãs,  dona de longos cabelos ruivos que formavam uma linda moldura em volta de seu rosto alvo e salpicado de sardas douradas perto do nariz. Os olhos verdes e muito expressivos, de olhar profundo, encimavam o nariz grego e os lábios bem torneados, sempre naturalmente coloridos por um rosa profundo, e ela tinha um sorriso muito branco e encantador. De personalidade frágil, às vezes passava horas trancada no quarto, as janelas fechadas, sem receber ninguém. Fui criada praticamente pelo meu pai, e quando as portas do quarto se abriam e eu tinha permissão para visitar minha mãe, sempre a encontrava sentada à penteadeira, escovando seus cabelos. Ela me recebia com muito carinho, abraçando-me forte, e murmurava em meus ouvidos: "Perdoe-me, querida filha, perdoe-me, doce Alana..." Eu queria dizer a ela que estava tudo bem, que eu não tinha nada o que perdoar, mas meu cérebro de criança não sabia formular as palavras certas, e então eu apenas me deixava ser abraçada por ela, aproveitando a beleza daqueles raros momentos. Lembro-me ainda de seu cheiro adocicado de baunilha, que vinha de um creme hidratante que ela sempre usava. Eu afundava o nariz em seus cabelos, aspirando-lhe o cheiro (talvez inconscientemente prevendo que não a teria durante muito tempo).

Minha mãe gostava muito de escrever. Escrevia poemas, mas não os mostrava a ninguém, a não ser meu pai. Tinha um caderno de capa azul onde ela anotava seus poemas e pensamentos, e o escondia sempre na prateleira mais alta do armário de seu quarto. Havia um cadeado na capa, de modo a proteger seu conteúdo.

Meu pai circulava pela casa como um fantasma, sempre em silêncio, para não perturbar o descanso de minha mãe. Passava muitas horas trabalhando no escritório, mas jamais recusava-se a me receber, interrompendo seu trabalho para caminhar comigo pelo jardim, respondendo às minhas muitas perguntas. Lembro-me com saudades daqueles longos passeios, e de nós dois sentados sob o caramanchão que derramava pétalas de roseira branca sobre nós, desprendidas pelo vento morno das tardes. Foi ali que ele me ensinou sobre as coisas da vida, e me contou muitas histórias dos tempos em que era jovem, e de como apaixonara-se por mamãe. Esta história eu gostava de ouvir muitas vezes:

Eles se conheceram durante uma ópera. Meu pai tinha dezoito anos. Entediado, ele olhava em volta durante o espetáculo, procurando alguma distração para passar mais rápido o tempo. Fora convencido por seus pais a comparecer ao espetáculo, mas logo descobriu que não gostava de ópera, e achou tudo muito enfadonho. Até que seus olhos pousaram sobre a criatura mais linda que ele jamais vislumbrara: minha mãe, aos dezesseis anos de idade. Durante as mais de duas horas de espetáculo, ele ficou mudo e totalmente embevecido pela beleza austera daquela menina, tão concentrada no que acontecia no palco, de olhar tão enlevado. Ela estava sentada na fileira da esquerda, junto ao corredor, e meu pai, também junto ao corredor mas à direita, uma fileira atrás da de minha mãe, podia observá-la cuidadosamente sem ser notado. As luzes do palco eram suficientes para deixar entrever as lindas feições e as rendas brancas e delicadas do vestido quase etéreo da moça, que diante dos olhos apaixonados de meu pai, transformavam-na em uma espécie de fada ou ser místico.

No intervalo, quando todos se levantaram para ir até a cafeteria do teatro, seus olhos finalmente se cruzaram, e os dois não mais deixaram de se olhar. Conversaram brevemente, e durante a conversa, meu pai ficou sabendo onde minha mãe estudava, e no dia seguinte, após as aulas, ele estava plantado à porta de sua escola, esperando por ela.

Casaram-se quando minha mãe tinha dezenove anos, e meu pai, vinte e um. Nasci um ano mais tarde. Meu pai sempre parava de contar a história naquele ponto. Mas eu queria saber mais; queria saber o motivo da tristeza constante de minha mãe. Queria saber o porquê daquelas outras moças - minhas tias - jamais nos visitarem, ou jamais serem mencionadas dentro daquela casa. Meu pai dizia sempre que alguns segredos de família jamais devem ser revelados, e proibia-me de indagar minha mãe àquele respeito, dizendo que ela ficaria muito magoada se eu o fizesse. Pedia-me que eu a poupasse de mais sofrimentos. Assim, cresci naquela casa silenciosa e cheia de mistérios, aos cuidados de meu pai e de Nana, minha babá, que desde que eu me conhecia por gente, estivera conosco. 

Eu pegava dentro do armário do corredor a caixa com as fotos, e me escondia no porão ou na floresta por trás da casa para olhá-las mais uma vez. Lá estavam as minhas tias, abraçadas, sentadas sob o mesmo caramanchão onde eu costumava sentar-me com meu pai, as mesmas rosas brancas derramando-se sobre elas. Eu passava os dedos pequenos sobre seus rostos, e secretamente, amava-as. Eram todas tão bonitas! Um dia, meu pai  surpreendeu-me com as fotografias, e fiquei gelada de horror, pensando que ele fosse castigar-me pela desobediência; ao invés disso, ele sentou-se ao meu lado e apontando as fotografias, ensinou-me os nomes de minhas tias, dizendo algumas poucas coisas sobre cada uma delas:

Minha tia Rosana era a que tinha os cabelos loiros, quase brancos, e a pele muito pálida e tão perfeita e uniforme quanto a mais fina porcelana. Olhos verdes muito claros, pestanas claras e longas que brilhavam à luz do sol. Muito magra e de aparência frágil, mas sempre a mais forte entre todas, era quem, segundo as histórias que meu pai contava, apoiava quem precisasse de ajuda e aconselhava sabiamente a todos que a procurassem. Amava as artes, e tinha muito talento para pintura - profissão que passou a exercer, fazendo muitas exposições ao redor do mundo. Também dizia-se que ela tinha outros talentos mais incomuns, como fazer premonições ou perceber as energias das pessoas que a cercavam. Muitas vezes, dizia coisas sobre as pessoas que ninguém mais poderia saber a não ser elas mesmas. Mas só o fazia quando solicitada.

Diana, a irmã do meio, tinha cabelos castanhos com reflexos ruivos. Na fotografia, eles apareciam presos em uma fita azul, descendo ao longo do ombro esquerdo. Seus olhos eram castanho-esverdeados, e a pele, quase morena. Gostava do sol, e passava muitas horas na praia que ficava próxima à casa onde cresceram. Tinha porte esguio e aparência muito taciturna e séria. Na fotografia, era a única que não estava sorrindo. Perguntei ao meu pai como ela era, e ele limitou-se, meio à contragosto, a dizer-me que Diana tinha poucas amigas e gostava de passar muitas horas sozinha, caminhando pela praia. Dera muito trabalho aos pais, pois sua beleza quase selvagem atraíra muitos homens mal-intencionados. Era a mais desobediente e rebelde entre as irmãs. Enquanto as outras apareciam nas fotos usando lindos vestidos, minha tia Diana trajava calças jeans e camisa xadrez. Eu olhava para ela durante muitas horas, tentando entender o que diziam aqueles olhos arredios. Aos treze anos,  Diana convencera meu avô a comprar-lhe uma roca antiga de um vendedor ambulante e aprendera a tecer lindas mantas, toalhas de mesa, fitas e colchas, que ela às vezes colocava em uma cesta e vendia na cidadezinha onde moravam . Era, segundo meu pai, a mais independente das irmãs.

Olga, a mais nova, aparecia na fotografia trajando um vestido verde-musgo que acentuava a cor dos seus olhos. Era a que tinha o rosto mais parecido com o de minha mãe. Também tinha os mesmos cabelos ruivos, só que muito lisos e finos. A mais "cheinha" das irmãs tinha curvas acentuadas, quadris largos e estatura mais baixa que as demais, embora não fosse gorda ou baixa. Meu pai contou-me que Olga era exímia cozinheira, e que desfrutar de uma refeição preparada por ela era quase como ter entrada permitida ao paraíso! Era ela quem preparava as ceias de natal da família, os bolos de aniversário sempre muito lindos e confeitados com arte e bom gosto, os sanduíches sofisticados dos piqueniques de domingo, os doces em compotas que eram presenteados a todos da família em vidros decorados pelo talento de minha tia Rosana e enfeitados pelas fitas fabricadas por minha tia Diana. Meu pai dizia que ninguém jamais se esquecia de uma refeição preparada por minha tia Olga. 

Notei que quando ele falava de minhas tias, seus olhos perdiam-se nas nuvens que passavam lá em cima, e às vezes, ficavam marejados. 

Conforme eu crescia, as perguntas sobre minhas tias iam mudando de conteúdo. Eu queria saber onde elas viviam, se eram casadas, se tinham filhos (meus primos), quem eram seus maridos, que tipo de vida elas levavam; mas meu pai apenas encolhia os ombros dizendo não saber, e mudava de assunto.

Às vezes, quando estávamos com minha mãe, nas raras vezes em que ela se mostrava alegre e sorridente e descia até o jardim para desfrutar uma tarde conosco, eu tinha vontade de formular tais perguntas. Mas lembrava-me das advertências de meu pai, e calava-me. Naqueles momentos, eu acabava me concentrando na beleza que era ver os dois juntos. Meu pai e minha mãe pareciam dois namorados, embora houvesse uma sombra nos olhos dela quando ela o olhava sem que ele a estivesse olhando. Eu me perguntava se ele percebia aquele traço de mágoa ou tristeza. E também me perguntava se não seria aquele o segredo de minha mãe - algo relacionado ao seu passado com meu pai. Mas era óbvio que eles se amavam muito, perdidamente, o que logo fazia com que minhas dúvidas desaparecessem pelo menos temporariamente. E o que eu mais queria naqueles momentos, não era perder-me em indagações complicadas, e sim, aproveitar a riqueza daqueles momentos tão raros e especiais. Porque, de repente, eu via que uma sombra escura fixava-se no rosto de minha mãe, o que fazia com que rugas finas que antes não estavam ali se formassem, e seus olhos verdes tornavam-se castanhos. Ela crispava as mãos sobre o colo, começava a respirar mais rapidamente, e sem mais nem menos, levantava-se da cadeira e subia para o quarto, trancando-se por horas, dias ou até mesmo, meses. E eu sabia que apenas quando aquela nuvem passasse eu teria permissão para estar com ela novamente.

(continua...)


A RUA DOS AUSENTES - Parte 4

  PARTE 4 – A DÉCIMA TERCEIRA CASA   Eduína estava sentada em um banco do parque. Era uma cinzenta manhã de quinta-feira, e o vento frio...