quarta-feira, 5 de julho de 2017

A MÃO & O LAÇO – CAPÍTULO XIII – Final









Quando procurei por Shirley, acompanhada de Noel, foi Reginaldo, o mordomo, quem atendeu a porta. Mandou-nos entrar, e quando pensei que ele tivesse ido avisar a Shirley que estávamos lá, ele voltou com um envelope branco e grande, de bordas douradas, em uma bandeja. Olhamos para ele, sem nada entender, e ele fez sinal para que pegássemos o envelope. Hesitante, perguntei-lhe:

-O que significa isto?

Solenemente, Reginaldo respondeu-me:

-Madame Shirley mandou entregar-lhe este envelope.

-Mas... onde ela está?

-Não sei informar-lhes. 

-Não sabe... não pode ou não quer?

Reginaldo ergueu as sobrancelhas, assumindo um ar frio e impenetrável:

-Madame deu-me ordens para que este envelope chegasse até a senhora. Nada mais posso dizer. Na verdade, eu já estava indo entregar-lhe, mas a senhora poupou-me o trabalho. Eu também já estou de saída.

Noel disse:

-Pegue logo o envelope e vamos embora daqui, Jordana.

E virando-se para Reginaldo:

-Obrigada.

Agarrei o envelope enquanto meu marido me puxava para fora do apartamento. Subimos em silêncio no elevador. Senti que havia algo sólido dentro do envelope, e apalpando, descobri os contornos de uma chave. Mal chegamos no apartamento, sentamos no sofá da sala e comecei a abrir o envelope. Realmente, ele continha uma chave. E uma carta, que comecei  a ler em voz alta::

“Querida amiga – posso chama-la assim?
Sei que o tempo que passamos juntas foi relativamente curto – apenas um ano escolar e algumas horas fora da escola, mas estas horas significaram muito para mim. Você me inspirou de verdade, Jordana. Acho que se não a tivesse conhecido a tempo, eu teria me transformado em alguém muito ruim, pois eu não tinha nenhuma esperança, nenhum sonho, nenhuma inspiração. Eu era uma pessoa amarga antes de você. Você significa muito para mim. A melhor amiga que já tive. Participar de sua vida, frequentar a sua casa e a casa de sua avó foi para mim uma experiência enriquecedora. Eu precisava, ao final de minha adolescência conturbada, de alguém em quem me inspirar. Alguém que me fizesse crer que valeria a pena ser uma pessoa melhor. Esta pessoa foi você. Eu estava perdida, pois acho que todo adolescente precisa de um ‘role model’, e eu não tinha nenhum adequado em minha vida, nenhum bom exemplo a seguir.” 

Parei de ler naquele ponto, a fim de recuperar o fôlego. Noel colocou a mão no meu ombro e fez uma carícia, percebendo o quanto eu estava emocionada. Continuei:

“Eu vivia por aí, tentando demonstrar ser o que eu não era: feliz, autoconfiante, sexy, poderosa e temida. Bem, talvez eu fosse temida. Mas minha vida era baseada em domínio e vingança. Eu me vingava quando as pessoas não faziam o que eu queria, mas eu não consegui me vingar de você. Porque eu a amava muito. Não sei explicar de onde vêm esses sentimentos - fique tranquila, era um amor de amiga, nada romântico! Na verdade, um amor de irmã. Também gostava muito de sua mãe, apesar de saber que ela não me apreciava, e adoraria ter nascido sua irmã. Mas as coisas são como são, não é?

E foi pela vontade de ser como você, de impressioná-la, de ser admirada pelo caráter que eu não tinha, que eu me modifiquei. Eu notava o quanto você era querida entre os professores da escola e entre as outras pessoas. Você nos trouxe algo novo, a sua presença naquele último ano foi como uma lufada de ar fresco. E tudo o que sua mãe fez por Diana, e pela mãe dela, sem nem sequer conhece-las! Fizeram apenas para ajudar, porque desejavam que elas tivessem uma chance. Eu nunca tinha visto ninguém fazer algo assim.”

Imediatamente, minha mente voltou àqueles tempos em que fôramos colegas de escola. Lembrei-me das muitas festinhas, das risadas que demos juntas, de nós duas de braços dados passeando pelo shopping; lembrei-me de nossas brigas e do quanto era bom fazer as pazes. lembrei-me das tantas vezes em que enxugamos as lágrimas uma da outra, e o quanto era bom ter alguém a quem contar as coisas que me aconteciam, e estar ali, sempre pronta para ouvir sobre ela – apesar das tantas mentiras que, mais tarde, descobri. Também lembrei-me daquela minha festa de aniversário polêmica, na qual Shirley chegou, arrasando com seu vestido decotado, justo e vulgar, mudando o ritmo de uma festa que poderia ter sido bastante chata, não fosse a sua presença bem humorada. Continuei a leitura:

“Nós éramos tão diferentes... e aquilo me fez perceber o quanto eu estava me afastando de tudo o que era bom na vida. Eu gostava de prejudicar as pessoas. Eu gostava de fazê-las sentir medo de mim. Gostava de sentir o poder de manipular a todos a fazer o que eu queria. Mas aquilo não teria me levado longe.
Quando o assunto do meu pai surgiu, percebi o quanto eu andava precisando desabafar sobre aquilo, que eu tanto escondia de todo mundo. Mas na verdade, embora eu tenha tentado com muita força odiá-lo e puni-lo pelo que ele tinha me feito, eu nunca consegui. Eu me via nele. Ele também tinha sido aquela criança que eu era, embora naquela época eu ainda não soubesse disso. E os adultos em volta dele em nada ajudaram; só atrapalharam. Por isso, quando sua mãe apareceu, mostrando-me que eu não tinha nada do que me envergonhar e que eu precisava de ajuda, pois era uma vítima, percebei que meu pai, de certa forma, também o era. Ele também precisava daquela ajuda. E antes que a polícia pudesse pôr as mãos nele, eu corri para ele e contei-lhe que ele estava em perigo. 

Você nem imagina o quanto aquilo nos aproximou- daquela vez, de verdade, como pai e filha! Senti que pela primeira vez em muitos anos, o olhar que ele me dirigiu foi amoroso, e arrependido também. Meu pai chorou. Naquela noite, no carro, quando estávamos com Diana, ele contou-nos a sua história. Mas isso não vem ao caso agora. 

Senti que eu poderia perdoá-lo por tudo, e me libertar daquela amargura, me preparando para ser uma nova pessoa, alguém melhor. Mamãe não compreendeu; ela nunca perdoou papai. Meu padrasto também não. Por isso, mantive segredo de tudo para eles também. Foi muito difícil não poder compartilhar aquilo com ninguém, pois eu sabia que ninguém nos entenderia. 

Bem, naquela noite, a nossa última, em que vocês me pressionaram e eu percebi que desconfiavam de mim, fiquei muito magoada. Senti que precisava me afastar. Pelo menos, por enquanto. Até que eu pudesse ter forças para contar tudo o que realmente tinha acontecido. Meu padrasto morreu, e eu e mamãe herdamos todo aquele dinheiro; nos mudamos. Ela conheceu outro homem, casou-se... percebi que não havia mais lugar para mim na vida dela. E eu não queria estar ali. Casei-me também, com um homem muito rico, e ele me deixou muito bem após a separação. Acho que ele ainda me ama. Procurou-me recentemente, e hoje, quando você estiver lendo esta carta, saiba que ele estará cuidando de mim. Porque até isso você me ensinou: a amar. Compreendi, ao ver você e Noel juntos, que eu me sentia da mesma forma em relação ao meu ex-marido. Fugi dele por medo. Eu não queria ser abandonada quando ele soubesse.

Mas ele ficou sabendo, e mesmo assim, me procurou e me quis de volta, mesmo sabendo que nós não teremos muito tempo. Estou doente, Jordana. Muito doente. E nem todo o meu dinheiro poderá me curar agora. Mas não se preocupe, eu estou bem, estou feliz. Porque vocês me perdoaram. 

Eu comprei e reformei este apartamento para você. Conheço seu gosto, conheço você e sei que vai adorá-lo. Mas pode modificar o que quiser. Tenho certeza de que você faria o mesmo por mim se pudesse, pois você é esse tipo de amiga. No envelope estão a escritura e a chave. Espero que você o aceite de bom grado. Se não quiser ficar com ele por algum motivo, ele será doado a uma instituição de caridade – meu advogado já arranjou tudo.”

Imediatamente, me arrependi das vezes em que desconfiei de Shirley. Lágrimas grossas rolaram dos meus olhos quando me lembrei da imagem dela se afastando, naquela nossa última noite. Eu nunca dei a ela uma chance de se explicar. Não dei a ela o tempo que precisava. 
Apertei a chave na palma de minha mão. Continuei a leitura:

“Acreditando que o que realmente conta não é o tempo de uma amizade, mas a intensidade do sentimento, eu me despeço de você, e espero que você possa ser capaz de guardar de mim uma boa lembrança. E não se preocupe: a esta hora, há uma carta contando à polícia a verdade sobre tudo o que aconteceu naquela noite. Só peço a vocês que não revelem, jamais, o paradeiro de meu pai. Deem a ele uma chance para aprender a viver. Pode acreditar em mim: por mais terríveis que tenham sido as coisas que ele fez, ele se arrependeu. Diante de Deus, que tudo conhece e que percebe a verdade das coisas, ele nada mais tem a pagar. Mas diante da justiça torta dos homens, que estão prontos a condená-lo pelo resto da vida, ele sofreria uma pena que não merece mais. Imagine, o próprio Judas Iscariotes jamais foi perdoado, e continua sendo pendurado nos postes e torturado por um bando de hipócritas, mesmo após ter se enforcado de tanto arrependimento pelo que fez... dirá meu pai! 
Meu pai hoje está velho. É uma outra pessoa. Ele tenta ser melhor a cada dia. Assim como todos nós.

Um grande beijo da sua amiga

Shirley.”

Nós nos mudamos para o apartamento algumas semanas depois. Minha mãe e minha avó leram a carta de Shirley, e acreditaram nela. As duas ficaram tão comovidas quanto eu fiquei. Laura e Adílio também receberam cartas semelhantes, e todos nós, do fundo de nossos corações, fomos capazes de entender e perdoar nossa louca amiga. 

Hoje, nós temos uma filha. Seu nome é Shirley. Nós ficamos com o apartamento, embora tenhamos feito várias modificações – o estilo extravagante de Shirley não combina com o nosso. Mas mantive algumas coisas como estavam, em lembrança dela.


FIM










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