terça-feira, 1 de agosto de 2017

JARDIM DAS DESILUSÕES

Jardin de l'Hôpital Vaugirard

JARDIM DAS DESILUSÕES

CAPÍTULO I

Ele diria que eu estava vivendo meu inferno astral – época que se dá pouco antes da data do aniversário de alguém, segundo os astrólogos. Mas aquele período já durava mais de um ano. Talvez ele chegasse em casa mais cedo, e me vendo deitada no sofá em frente à TV com cara de tédio, dissesse: “Levanta daí, e vá vestir alguma coisa bonita. Nós vamos sair.” E se eu perguntasse para onde estaríamos indo, ele me responderia que não sabia, pois ainda não pensara no assunto. Porque ele era assim. Ele era intenso, repentino, um baú de surpresas. E a gente sempre acabava caminhando pelas ruas de Paris e ficando levemente bêbados em algum café. Depois, chegávamos tarde em casa e ele ia dormir. Eu passava pelo corredor, e o escutava falando baixinho ao celular. Sabia – e como doía – que era com ela.  

Jamais me esquecerei de um dia – uma sexta-feira – em que ele chegou em casa com uma faixa vermelha no cabelo. Achei engraçado e estranho, vê-lo com aquela mexa de cabelos vermelhos sobressaindo entre o castanho claro, quase louro. Perguntei por que ele tinha feito aquilo, e ele respondeu: “E por que não faria?” Quando minha boca recusou-se a se fechar de tanta surpresa, ele passou por mim piscando um de seus olhos azuis, e disse: “Não se preocupe: é papel crepom. Sai com água.” E eu pensei: “E por que não sairia?”

Nós dividíamos aquele apartamento em Paris com uma outra brasileira que também estudava Belas Artes, como ele, a Giulia. Eu estava fazendo pós em arquitetura. Nos encontramos através de um anúncio na internet onde Giulia oferecia duas vagas no apartamento de Paris que pertencia a um tio que morava em Los Angeles e que ela quase nunca via. Precisava dividir as despesas e conseguir dinheiro para manter-se por lá. O tio deixou que ela ficasse no apartamento o tempo que quisesse, e também que tivesse locatários.


Rue de Vaugirard


O apartamento ficava no segundo andar de um prédio antigo, na Rue de Vaugirard, uma das mais longas de Paris, e também uma das mais calmas. Eu adorava aquela rua, pois além oferecer um comércio excelente, tinha também seis estações de metrô e o belíssimo Jardin de l'Hôpital Vaugirard, que tinha sido o jardim de um hospital e depois transformado em um parque. Era lá que eu passava grande parte do meu tempo livre, caminhando entre as flores ou sentada à sombra de uma árvore. Era ali que eu ficava pensando nele, sem correr o risco de que alguém percebesse.

E por mais estranho que parecesse, era quase sempre ele quem ia me buscar; de repente, ele surgia do nada, e quando me via (meu coração sempre batia escancaradamente mais forte naqueles momentos), Nando gritava: “Oh, ma petit mademoiseille Cristina!” E vinha andando na minha direção de maneira afetada, como se fosse uma espécie de mordomo do século passado. Eu ria para não chorar. Sabia de onde ela tinha vindo, e o perfume não me deixava nenhuma dúvida.

Ele se sentava ao meu lado, o ombro esbarrando no meu. Eu fingia que estava concentrada na leitura, e ele começava a me empurrar de leve com o ombro, o que me fazia rir, mas eu não erguia os olhos do livro que fingia ler. Eu bufava de impaciência, o que fazia com que ele me esbarrasse com mais força. Eu só conseguia pensar que, há apenas alguns minutos, aquele corpo estava envolvido nos lençóis e nos braços de outra mulher. Finalmente, eu fechava o livro, olhando-o nos olhos:

-O que você quer, afinal?

Ele olhava em volta antes de responder, os olhos cerrados pelo sol. Depois, soprava em meu rosto, dizendo:

-Nada... a Giulia me disse que você estava aqui. Acabei de chegar em casa.

Era quase sempre assim. Eu não sabia qual era a dele. Não sabia se ele sabia. Talvez eu fosse tão insignificante para ele, quero dizer, como mulher, que ele nem desconfiasse. Mas a Giulia já tinha percebido, e me desencorajava:

-Ele namora essa garota há séculos, desde o Brasil. Ela vem passar as férias aqui. 

Mas a tal garota – Maria – acabou não apenas indo passar as férias, mas se mudando para Paris. Felizmente, não havia vagas no nosso apartamento, e ela foi morar em uma outra república perto dali. Eu percebia que Maria não gostava muito de mim, mas ficava na minha. Sabia que ela tinha seus motivos. Mulher sempre tem uma intuição forte para essas coisas, embora eu tivesse certeza de que ela não me via como uma ameaça. Na verdade, nem sei se ela realmente me via... 

O que me fazia sentir ainda pior, era o fato de que ela era linda. Maria tinha cabelos negros, sedosos e lisos, pesados e volumosos, uma verdadeira cascata capilar maleável e perfumada que quase chegava até o meio das costas. Quem tem cabelos assim não deveria ter o direito de usá-los soltos! Além disso, ela era alta, magra, tinha unhas longas pintadas de vermelho, usava roupas de manequim (já tinha sido modelo durante algum tempo, Nando um dia me dissera). E tinha aqueles irritantes olhos verdes de gata, encimados por um par de sobrancelhas perfeitas e arqueadas. Maria era gritantemente bonita.

E eu, uma mulher que não crescera muito – apenas 1,60 – cabelos castanhos e ondulados, que eu esticava para manter um corte Chanel na tentativa de parecer um pouco mais sofisticada, olhos castanhos do tipo comum, os dedos das mãos terminando em unhas de pontas quadradas, enfim, o retrato da pessoa corriqueira, dessas que todo mundo passa por ela nas esquinas e nem nota. 

Giulia também era muito bonita: uma ruiva natural de cabelos cortados bem curtos, olhos castanho-amarelados, pele perfeita, dentes muito brancos, pernas longas demais. Quando ela as cruzava na minha frente, sentada no sofá, eu sentia sempre uma pontinha de inveja, e encolhia as minhas perninhas na poltrona, enrodilhadas feito pequenas cobras. 

Eu estava em desvantagem ali. Nando nunca olharia para mim, nunca me enxergaria, eu tinha certeza disso. Se um dia se cansasse de Maria, com certeza não seria eu a substituta. E ela sabia disso, pois não sentia ciúmes quando nós saíamos juntos. 

Às vezes saíamos os quatro. Maria mal falava comigo, referindo-se sempre à Giulia e limitando-se a fazer algum comentário sobre o que eu dizia apenas para não parecer mal educada. Mas ela me olhava de cima – e isso nada tinha a ver com o fato de ser bem mais alta do que eu, pois naquelas ocasiões estávamos sentadas numa mesa de bar – e assentia com a cabeça a alguma coisa que eu tinha dito, dando o ar de um risinho piedoso. Ela às vezes abraçava Nando pelo pescoço, e ficava arrulhando alguma coisa no ouvido dele. Naqueles momentos, eu queria que o chão se abrisse e eu fosse tragada até a China – sem chance de volta.  E quando a noite terminava e ele ia embora com ela, eu e Giulia íamos caminhando sozinhas até o apartamento pelas calçadas vazias da nossa rua, em silêncio, até que ela explodia: 

- Nunca vou entender por que você faz isso consigo mesma. Poderia ter dado uma desculpa para não ir, sei lá. 

Eu encolhia os ombros, e não respondia. Na manhã seguinte, me refugiava em meu jardim dos sonhos, o consolador Jardin de l'Hôpital Vaugirard. Tentava não chorar muito durante a noite para não ficar com os olhos inchados demais. 

O fato é que eu estava ficando cada vez mais melancólica, desde que Maria se mudara para Paris, e Nando já tinha percebido a minha tristeza. Vivia fazendo palhaçadas para tentar me alegrar. Será que ele não sabia mesmo qual o verdadeiro motivo da minha tristeza? Quando ele perguntava alguma coisa, eu dizia que estava com saudades de casa, da minha mãe, do meu pai, do meu cachorro. Ia revezando minhas saudades entre eles. Então Nando se sentava ao meu lado e passava o braço em volta do meu pescoço, como ele faria com qualquer amigo homem, e dizia: 

-Vai passar. Com o tempo, você se acostuma.

Ou então vinha com aquela história de inferno astral. 

Eu não sabia mais o que fazer. Aquela situação já durava um pouco mais de um ano. Aquela paixão que doía, me escravizava, me fazia sangrar por dentro. E nada mudava. Maria às vezes aparecia por lá de repente, e se trancava no quarto com o Nando. Enquanto eu estava sentada na sala assistindo TV, ficava imaginando o que estava acontecendo lá dentro. Eu reclamava com Giulia:

-As regras da casa diziam que era proibido trazer namorados para casa! Você não vai falar nada? Essa situação não pode continuar!

Ela se desculpava:

-Maria agora é da casa. Ela não é alguém que o Nando pegou na rua, ela é... a namorada oficial dele. E também é nossa amiga.

-Sua amiga.

Ela bufava:

-Está bem: minha amiga! Eu gosto dela. Você só não gosta porque...

Ela se calou.

Eu recolhi a minha insignificância, pus debaixo do braço e fui para o meu quarto. 
Bati a porta quando entrei só para incomodar os dois pombinhos ao lado. Me deitei na cama, sabendo que a apenas alguns centímetros de parede de distância, os dois deveriam estar engalfinhados, ela com aquele par de pernas longas enroscadas em volta dele... ou do pescoço dele. E eu escutei um risinho seguido de um gemido. Tapei a cabeça com o travesseiro.

(continua)








Um comentário:

  1. Amiga Ana , sou do blog da biblioteca madre Ódila Maroja, da escola onde eu e a Professora Lourdes Trabalhamos. Criamos um blog didático para que os estudantes encontrem nesse espaço diferntes conteúdos de diversas áreas de conhecimento. Estamos organizando uma postagem sobre características dos textos. Contos, estamos levando o capítlo I deste seu maravilhoso conto para postar. Colocaremos os créditos seus e a indicação para continuar lendo o conto aqui na sua página. Esperamos que não se oponha e convidamos você a conhecer nosso espaço. Caso não seja do seu agrado, deixe no comentário que iremos retirar. Abraços, já sou seguidora do seu.

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