quarta-feira, 25 de outubro de 2017

AMOR E REVOLTA – CAPÍTULO I








Era o mês de setembro. Rafaela parou o carro em frente à clínica de reabilitação mental onde o filho Marvin de 16 anos estava internado há quase duas semanas, em tratamento psicológico. Respirou fundo, e como se suas pernas pesassem toneladas, hesitou antes de sair do carro. Era dia de visita, e Paco, seu marido, que estava fora em uma viagem de negócios, não poderia ir. Melissa, sua filha de quinze anos, também não poderia visitar Marvin, pois estava em época de provas e não podia faltar à escola naquele dia. Aquela seria a primeira vez que Rafaela entraria por aquela porta sozinha, e sentia-se fraca. Não sabia como Marvin reagiria ao ver que o pai e a irmã não tinham vindo.

As memórias daquele dia terrível voltaram à sua mente. Rafaela foi quem o encontrou ao chegar do trabalho e passar pela sala de estar que se encontrava revirada, e ela pensou tratar-se de um assalto ao ver a TV espatifada no chão, os livros das prateleiras, objetos de decoração e demais móveis espalhados pelo chão, quebrados ou revirados. Ela se lembrou de que Melissa estaria na casa da amiga Gabi àquela hora, estudando para uma prova, e que Cadu tinha telefonado dizendo que ficaria no escritório até mais tarde. Com lentidão, seu cérebro registrou a informação de que apenas Marvin estaria em casa àquela hora, sozinho, e ela correu até o quarto dele angustiada, encontrando-o vazio. Chamou-o pelo nome, e como não houvesse resposta, ela começou a andar pela casa procurando por ele, passando sobre pilhas de livros escolares e papéis da escola que estavam em todos os lugares. 
Finalmente, atraída por um forte cheiro de éter, encontrou-o no banheiro do corredor, desacordado entre um mar de sangue que a fez escorregar e quebrar o braço. Mesmo assim, sentindo dor, ela conseguiu erguer-se e chamar a ambulância. Quando eles chegaram e os paramédicos a viram cheia de sangue, logo correram para ela, mas ela gritou: “Eu estou bem. É meu filho! É meu filho!” E apontou em direção ao banheiro. Enquanto os paramédicos iam na direção apontada, ela encostou na parede e deixou-se escorregar até o chão. Foi quando todo o estresse veio à tona, e ela começou a chorar e tremer.

Marvin ficou no hospital por quase uma semana. Perdera muito sangue. Ela não sabia há quanto tempo ele estivera naquela situação até ser encontrado. Rafaela e Cadu não puderam conter a emoção que sentiram quando o filho abriu os olhos pela primeira vez depois de dias. É claro, a pergunta que fizeram, em primeiro lugar, foi “por que?” Marvin chorou muito, explicando que não tinha a intenção real de se matar. Rafaela perguntou sobre o cheiro forte de éter que ela sentira ao encontra-lo, e ele confessou que tinha usado o éter a fim de desinfetar a lâmina com a qual cortara os pulsos, e também para cheirar e desmaiar a fim de suportar a dor e o sangramento sem entrar em pânico total. 
Rafaela e Cadu ficaram muito magoados com a atitude do filho, e várias vezes chegaram a discutir o porquê de todos eles terem chegado aonde chegaram. Cadu prometera que dali em diante procuraria chegar mais cedo em casa e participar mais da vida em família, e Rafaela também prometera a mesma coisa. Tentaria mudar seus horários no trabalho para estar em casa com as crianças quando eles chegassem da escola, e por causa disso, acordava duas horas mais cedo. Mas Cadu ainda não cumprira sua promessa, e continuava dedicando-se muito ao trabalho. Dizia que era apenas até terminar um trabalho que já tinha começado, um caso difícil que ficaria muito inconveniente transferir para outro advogado da firma onde trabalhava. 

Durante o período de análise psiquiátrica, Marvin dissera que desejava apenas chamar a atenção dos pais para seus problemas, porque eles não o escutavam. Jamais pensara que acabaria quase conseguindo morrer de verdade.

Ainda no carro, após  reviver aquelas memórias horríveis, Rafaela fechou os vidros e saiu, acionando o alarme. Foi caminhando devagar. Após conversar com o psiquiatra, Dr. Figueiredo, achou Marvin sentado em um banco do jardim da clínica, as mãos cruzadas e os cotovelos apoiados nos joelhos, olhando para o gramado. Ela estancou o passo e ficou ali, observando-o, antes de deixar que ele a visse. Percebeu que Marvin estava mais corado, e tinha ganho um pouco de peso. De repente, ele ergueu a cabeça e olhou na direção dela, sorrindo, e aquele sorriso iluminou seu dia. Eram raras as ocasiões em que ela o via sorrir. Andou até ele, que se ergueu e aninhou-se entre os braços dela. Rafaela o abraçou com cuidado, como quem tem medo de quebrar as asas de um pássaro frágil. 
Antes de vê-lo, ela tinha falado com o Dr. Figueiredo, psiquiatra da clínica, que cuidava do caso do seu filho. Ele lhe dissera que Marvin estava bem melhor, mas que teria que continuar o tratamento terapêutico e com medicamentos para controle da ansiedade por algum tempo ainda. As pressões da escola e das muitas atividades extra-classe na qual estava engajado não poderiam continuar. Ele precisava de um tempo. Talvez fosse melhor que ele não voltasse à escola naquele ano, e no ano seguinte, eles deveriam considerar mudá-lo de escola, já que aquela onde o matricularam há dois anos, seguia um regime muito rígido e competitivo para o qual Marvin não estava preparado para voltar ainda. Talvez jamais estivesse. O médico explicou mais uma vez que ele tinha personalidade sensível e impressionável, e seu excesso de empatia fazia com que ele absorvesse para si as reações das pessoas em volta. As constantes cobranças dos professores para que ele melhorasse seu desempenho faziam com que se sentisse inferior aos demais colegas. Marvin poderia ser um aluno mediano por toda a sua vida se continuasse naquela escola tão rígida, e isto poderia afetar negativamente sua autoestima e sua noção de valores. Uma escola mais liberal e menos exigente poderia ajudá-lo a se adaptar melhor e a melhorar seu desempenho como aluno. Dr. Figueiredo deu a ela um cartão de visita indicando uma escola com aquelas qualificações. Rafaela olhou o cartão: “Escola da Luz.” Achou o nome muito estranho; afinal, todas as escolas que conhecia tinham nomes mais imponentes, ou então homenageavam alguém. Dr. Figueiredo logo notou seu olhar descrente, e assegurou-lhe:

-Esta escola é muito boa. Meus filhos estudaram lá. A única diferença entre as outras escolas, é que os alunos são convidados a pensar e concluir sem pressões ou afirmações pessoais por parte dos professores, que apenas mostram o caminho. Também não existem as pressões das provas e testes, pois o desempenho dos alunos é testado desde o primeiro dia de aula através do seu desempenho geral. 

-Mas é uma boa escola? O nível de ensino não é fraco?

-Não se preocupe; meu filho formou-se em engenharia e minha filha em psicologia. Se o ensino fosse fraco, nem teriam passado no vestibular...

Dr. Figueiredo achou melhor não mencionar o fato de que seus dois filhos precisaram fazer cursos pré-vestibular durante três anos, após duas tentativas fracassadas de ingressarem em uma universidade. Mas na certeza de que aquela seria a melhor alternativa para alguém como Marvin, recomendou a escola, estressando o fato de que Rafaela poderia procurar outras escolas, se achasse melhor. E de fato, era uma boa escola. Seus filhos, porém, mimados que eram, não sabiam valorizar a sorte que tinham. 

Dr. Figueiredo também disse que o fato de ter sido uma tentativa de suicídio forjada – ninguém que tenciona realmente morrer tem a preocupação de desinfetar as lâminas que vão cortar seus pulsos antes – era melhor estarem seguros de que, ao deixar a clínica, Marvin estivesse se sentindo mais tranquilo. Achou melhor que Marvin fizesse novos testes na clínica, e que fosse liberado apenas após os resultados serem analisados, na semana seguinte.

Ao abraçar a mãe, Marvin logo perguntou:

-E papai e Melissa?
-Não puderam vir hoje, mas mandaram mil beijos para você. Melissa está estudando muito para as provas... teve um teste hoje... e seu pai está em viagem.

Ela viu o rosto dele ficar sério por alguns instantes, e uma sombra rápida passar sobre ele. Ela emendou:

-Mas tenho novidades: no final de semana, ela virá com a Gabi e o Luis. E eu e seu pai também. Trarei alguns livros para você. Sobre o que você quiser, é claro.

-Mãe... agradeço, mas a última coisa que eu quero ver nesse momento, são livros. Nem os não-didáticos. 

Ela ficou sem graça:

-Claro... que falta de sensibilidade... desculpe. 

-Também não quero que a Gabi e o Luis me vejam aqui. 

Ela ficou triste:

-Por que? São seus amigos! Se preocupam com você!

-Eu sei... mas... prefiro não vê-los por enquanto, mãe. É que eles me lembram a escola. Eles me lembram o que aconteceu naquele dia... quando eu estiver em casa eu juro que falo com eles.

Ela tentou demonstrar mais entusiasmo:

-Doutor Figueiredo me disse que talvez você possa ir para casa na próxima semana!

Marvin balançou a cabeça, deixando com que os cantos da boca se erguessem em um tímido sorriso. 

-Hey! Achei que fosse ficar mais feliz!

-Eu estou... mas vou ser obrigado a voltar para aquela escola, mãe?

Ela o abraçou de maneira protetora, beijando-lhe os cabelos e dizendo:

-Nunca mais.


(continua...)




3 comentários:

  1. Mais um dos seus belos contos.
    Fico já esperando a sequencia,
    para entender o psicológico do Marvin cpm relação á escola.
    Muito bom Ana.
    Meu abraço

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  2. Lindo e emocionante conto. Parabéns querida por escrever tão bem e mexer com nossas emoções. Abraços

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  3. Talvez o Marvin tenha reclamado aos pais sobre o método aplicado pela escola e os mesmos não tenham dado a devida atenção, daí, aconteceu. Pelo que li, promete ser um belo conto.

    Abraços,

    Furtado

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