quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Talvez Um Dia










TALVEZ UM DIA






Estela examinou novamente suas unhas; queria que estivessem absolutamente impecáveis. Também retocou a maquiagem, borrifou um pouco mais de perfume e passou uma escova de leve pelo vestido preto colante - o mesmo que Rogério lhe dera no seu primeiro aniversário juntos, e que ela estava guardando justamente para uma ocasião como aquela. Olhou o relógio: Ele estava meia hora atrasado. Estela respirou profundamente, sentando-se no sofá e ligando a TV. Estava acostumada Àqueles atrasos, e até mesmo, a ausências sem quaisquer explicações. 

Tentando manter-se calma, procurou concentrar-se no filme, mas a história penetrava em seu cérebro como água em uma peneira, o enredo escorrendo sem esforço para o carpete bege. Ela lembrou-se da última conversa que tivera com Carla, há algumas horas - aliás, as duas tinham brigado. Carla era sua amiga desde os tempos de colégio, e não conseguia entender que apesar de serem amigas, quem mandava em sua vida ela era mesma. Havia certas áreas de sua vida que Estela não permitia que ninguém penetrasse. Lembrou-se mais uma vez das palavras duras da amiga; palavras que ela tentava esquecer, encobrir, mas que continuavam a vir à tona toda vez que ela se distraía. 

Pensou em ligar para sua mãe ou para sua irmã, mas estava nervosa demais para conversar. Sentia calafrios percorrendo a sua espinha.

Ela olhava em volta, pensando que em breve ele estaria ali, morando com ela; quem sabe, ele acharia melhor comprar um apartamento maior para eles? Estela estava cheia de esperanças. 

Porque naquela noite, ele havia prometido que a levaria a um lugar especial a fim de comemorarem seu segundo ano juntos. Tentou alegrar-se; afinal, ele lhe prometera que daquela vez conversaria com a esposa; explicaria a ela que já não a amava mais, e que deveriam separar-se. Estela varria para longe as memórias das outras vezes em que Rogério lhe fizera aquela mesma promessa, mas que não cumprira. Sempre havia um motivo para não fazê-lo: a morte da sogra, a doença da filha pequena, o aniversário da mãe, mudanças importantes no escritório que exigiam que ele passasse a imagem de alguém com uma vida sólida e regrada. E ela chorara todas as lágrimas a que tinha direito em cada uma daquelas ocasiões, mas daquela vez, ele jurara a ela que seria diferente. Pediu-lhe que ficasse bem bonita, pois quando viesse buscá-la, já estaria livre, e os dois poderiam sair para jantar fora como qualquer casal normal, sem medo de serem descobertos. 

Novamente, a voz de Carla ecoando em seus ouvidos. Estela deixou-a vir mais uma vez ao seu consciente:

-Será que você não vê que ele está enganando você? Ele não vai deixar a esposa! Para ele, é muito cômodo ficar com as duas, já que nenhuma dá um ultimato. Você já tem 35 anos, Estela! Logo sua juventude terá acabado. Você quer ser a outra para sempre? Ou quer passar seus últimos anos de juventude com um homem que não a merece, enquanto poderia estar tentando encontrar o cara certo?

-Não se meta na minha vida, Carla, já lhe pedi isso várias vezes! Somos amigas, mas se você continuar insistindo  nesse assunto, teremos que romper a amizade! Já disse que sou bem grandinha para fazer minhas próprias escolhas!

Carla havia pego sua bolsa sobre o sofá e saído do apartamento batendo a porta atrás de si, enquanto Estela secava o rímel borrado - estivera se maquiando para sair com Rogério - e tentava parar de chorar para poder reaplicá-lo. 

Agora, o atraso chegava a trinta e nove minutos. Estela tentou acalmar-se. Na TV, o filme continuava. Ela não fazia a menor ideia do que estava acontecendo naquela história. De repente, ela pensou que também não fazia ideia do que estava acontecendo na sua própria história. Só sabia que estava apaixonada por Rodrigo. Viam-se duas vezes por semana, às vezes, menos. Ela não podia mandar-lhe mensagens - ele cuidava de comunicar-se com ela quando necessário. Tinha cadastrado seu nome como sendo um tal Jean Carlos, gerente de outra filial de sua companhia. Jean Carlos realmente existia, caso a esposa desconfiasse e fosse checar, porém os dois nunca tinham se falado. Rogério pediu a Estela que, caso a esposa tentasse passar-lhe alguma mensagem por aplicativo, ela respondesse como se fosse Jean. E que jamais atendesse ligações. Mas a esposa de Rogério nunca tinha tentado se comunicar com ela, ou com Jean. 

Rogério era cuidadoso, e tinha certeza que a esposa não desconfiava de seu caso com Estela, mesmo após dois anos. Se ele pensava em deixar a esposa? Às vezes; mas, na maior parte do tempo, ele gostava do calor do lar, e da companhia da mulher e da filha, que lhe transmitiam segurança. No fundo, amava a mulher e sua vida. Amava a casa confortável e ampla onde viviam, e a ideia de sair dela não o agradava. Mas também estava apaixonado por Estela. Ela era para ele o sal da vida, o tempero, o que lhe dava forças para enfrentar um dia difícil no escritório. 

Estela era o seu segredo mágico, sua fonte de vitalidade e prazer. 

Duas horas mais tarde, Estela estremeceu ao ouvir o celular bipar. Mensagem de Rogério:

-"Oi, amor. Não vai dar. Estamos com visitas. Te vejo amanhã. Beijos."

Simples assim.


As lágrimas caíram uma a uma, molhando a saia do vestido.  




fim





domingo, 21 de outubro de 2018

O LAR DE OFÉLIA - CAPÍTULO XVII - FINAL







O Lar de Ofélia - parte XVII - FINAL


Ofélia acordou sozinha novamente, e com a voz de Anselmo ressoando em sua cabeça: "Lembre-se de quem você é, e do que necessita fazer para ficarmos juntos!"
Ela ergue-se da cama, sentindo-se muito fraca e combalida. Dirigiu-se à cozinha para tomar um copo de água e preparar alguma coIsa para comer, e ao passar pela sua imagem no espelho do corredor, notou o quanto tinha emagrecido e o quanto sua pele estava pálida. Chegou à cozinha, tomou dois grandes copos d'água e sentou-se. Abriu o armário: não havia nada para comer, a não ser um pouco de pó de café e algumas bolachas de nata. Ela não tinha feito compras. Já era madrugada, e teria que esperar até o dia amanhecer a fim de ir ao mercado fazer compras ou encomendar algo. Enquanto isso, ia ter que sobreviver daquelas bolachas e do que restava do café.

Ela comeu, e então sentiu vontade de assistir televisão - algo que já não fazia há tempos. Achou que talvez a TV, os comerciais e as pessoas na tela a lembrassem de que ainda se encontrava no mundo dos vivos, com suas urgências e concretudes. Ela sentou-se no sofá com mais uma xícara de café, e começou a assistir a um velho filme. Aos poucos, as imagens das pessoas na tela foram ficando cada vez mais distantes. Suas bocas se mexiam, mas elas não pareciam dizer nada. 

Quando despertou, uma campainha tocava insistentemente, ao mesmo tempo que alguém batia à porta. Com a cabeça entre as mãos, Ofélia levantou-se e se encaminhou à porta de entrada, sem pensar muito. Ouviu a voz de Magda chamando por ela, aflita. Como Magda descobrira que ela não tinha viajado? Achou melhor abrir a porta; ajeitou um pouco os cabelos com as mãos, e respirando fundo, abriu a fechadura.

Magda olhou para ela, dos pés à cabeça. Ela carregava algumas bolsas de supermercado. Ainda custou a dizer qualquer coisa, surpresa com a aparência macilenta de Ofélia. Deu graças a Deus por Bruno ter telefonado para ela no escritório no dia anterior, preocupado com Ofélia. Achou que mais um pouco, e Ofélia poderia ter ... preferiu não concluir seu pensamento. 

Ofélia tentou um sorriso forçado, mas ele não saiu. Ela fez um gesto para que Magda entrasse, e seguiu-a até a cozinha, onde Magda, sem nada dizer, começou a preparar uma refeição para Ofélia, que sentada à mesa de madeira antiga, a cabeça apoiada na mão, observava a mulher de meia-idade movendo-se pela sua cozinha, procurando por utensílios, acendendo o fogo, fritando os bifes e preparando a salada e o arroz. 

Magda olhou para ela, enquanto Ofélia comia, e disse:

-Você precisa ver um médico. Está deprimida, e não duvido que se eu não tivesse recebido o telefonema do seu vizinho, você poderia ter morrido dentro desta casa! Assim que terminar de comer, vai tomar um banho e eu vou levar você a um psiquiatra.

Ofélia não respondeu. Não tinha a menor intenção de obedecer Magda, mas naquele momento, não queria discutir com ela. Só queria poder alimentar-se, fortalecer seu corpo. Magda continuou:

-Aquele rapaz gosta realmente de você, Ofélia. 

-Ele é muito mais jovem do que eu, Magda. 

-E daí?

Ofélia pensou que aquela pergunta, aquela pequena indagação, fazia muita diferença, mas daria muito trabalho para explicar tudo. Mais tarde, enquanto Magda lavava a louça, Ofélia deixou-se ficar sob a água tépida do chuveiro. Conseguia escutar Magda lidando com as louças na cozinha, enquanto deixava que a água quente a reanimasse um pouco.

Na cozinha, Magda sentia a atmosfera pesada da casa como uma cortina de chumbo sobre seus ombros. Não gostava daquele lugar, e achava que morar ali não podia fazer bem a ninguém, e pensou que talvez fosse melhor demolirem a casa e venderem o terreno. Àquele penamento, uma dor fininha passou por sua testa, indo alojar-se por trás dos olhos. Ela se sentou à mesa, e pegando sua bolsa, agarrou um comprimido e engoliu-o com água. Sentia-se mal naquele lugar. Olhou em volta: apesar do luxo e da beleza da casa, havia algo de maléfico dentro dela. Ela sentia que a casa sugava as energias das pessoas - pelo menos, a dela.

De repente, Magda sentiu-se levemente sonolenta. Imagens começaram a aparecer diante dela. Imagens que ela reconheceu, embora não fizessem muito sentido, como cenas de outras vidas. Algum tempo se passou antes que Magda se recuperasse do seu transe. Já desperta, ela juntos todas as imagens como numa colcha de retalhos, e tudo pareceu fazer sentido então.

Ofélia apareceu diante dela, de cabelos molhados, usando um vestido branco leve. Magda teve um leve sobressalto à presença silenciosa dela.  A cor da sua pele e a cor do vestido eram quase idênticas. 

-Ofélia... você me assustou... bem... vamos?

-Obrigada, Magda, mas não vou a lugar nenhum... por favor. Não insista. 

Magda percebeu que poderia ser mesmo inútil insistir naquele momento, então tentou apenas conversar com ela. Fez a pergunta que não queria calar:

-É esta casa, não é? Existe alguma coisa nela. Você mudou muito desde que veio para cá. Nos vimos poucas vezes desde então, mas deu para perceber. O que está havendo, Ofélia? Você sabe que pode confiar em mim.

Ofélia queria desesperadamente poder confiar nela, em qualquer pessoa, mas temia que se dissesse alguma coisa comprometedora sobre os últimos acontecimentos, algo de terrível pudesse acontecer às pessoas com quem se abrisse. Ela olhou para Magda, e esta viu o desespero nos olhos dela. Sem nada dizer, fez sinal para que Ofélia a seguisse até o jardim.

Lá chegando, o sol da manhã aqueceu a pele de ofélia, que começou a sentir-se um pouco melhor, pois a atmosfera dentro da casa era pesada e obscura. 

Magda caminhou com ela por algum tempo, em silêncio. Pararam junto a um banquinho de madeira, onde se sentaram. Ofélia se perguntava se Anselmo poderia ouvi-las dali, e logo teve a certeza de que sim, pois ele a olhava da janela do quarto, no andar superior. O olhar dele era frio e severo.

Ofélia entendeu que se quisesse conversar com Magda sem colocá-la em risco, teriam que sair dali. Pegando-a pela mão, ela se levantou, levando Magda até o portão e abrindo-o, saiu junto com ela para a rua e para a vida real. Magda deixou-se conduzir; também ela vira o homem à janela, a figura fantasmagórica e ao mesmo tempo, bela e fascinante que as observava, e como fosse médium, logo compreendeu que aquele homem não fazia parte do mundo dos vivos. Na rua, Ofélia implorou-lhe:

-Você precisa ir embora, Magda, e não voltar mais. Aqui, você estará em perigo, podendo ser morta como... como...

-A ex-namorada de seu pai, não é?

Magda assistiu, enquanto o desespero de Ofélia dava lugar às lágrimas e a um leve aceno de cabeça, concordando com ela. Magda ergueu a mão, secando o rosto dela com um lenço de papel que tirara da bolsa. 

-Se eu corro perigo, você também, querida. Não vou deixá-la aqui sozinha. Eu a conheço desde muito pequena... trabalho para o seu pai há anos... conheci sua mãe... não vou abandonar você, que é... como uma filha para mim. 

De repente, Ofélia olhou para o rosto de Magda e percebeu que o que ela dizia fazia todo sentido: viu-a em uma outra vida, sendo, realmente, sua mãe. Lembrou-se do quanto ela sofrera, ao ver sua filha querida adolescente definhar e morrer de uma doença longa e terrível. Magda realmente tinha sido sua mãe!

Ofélia abraçou-a, e Magda sentiu que aquele abraço era uma coisa que ela esperava há anos. Magda e Ofélia começaram a afastar-se de casa aos poucos, caminhando pela rua. A manhã estava belíssima, e pássaros cantavam ali perto. Lá em baixo, Ofélia podia ver Bruno e seus amigos reunidos, conversando. Ele a viu, mas não fez menção de acenar para ela. Ao olhar para ele, Ofélia compreendeu que jamais poderia fazer o que Anselmo lhe pedia. 

Ao olhar novamente para Magda, notou que ela estava de olhos fechados. Chamou por ela, sem obter resposta. Magda estava parada, lívida, respirando quase que imperceptivelmente. As duas estavam sob uma grande árvore, um olmo, que fazia sombra sobre elas. Ofélia achou melhor não interromper o que quer que estivesse acontecendo com Magda. após alguns minutos, Magda abriu os olhos, e seu olhar era muito triste e preocupado:

-Não volte àquela casa, Ofélia. Eu lhe peço. Aquelas pessoas... aquelas.. criaturas que lá se encontram, não têm mais nada a ver com você. 

-Não é verdade! Eles são meu marido e minha filha!

-Sim, mas... você reencarnou várias vezes, seu espírito evoluiu. Você é outra pessoa, enquanto eles permaneceram ligados aos seus desejos de vingança, à sua sede de sangue. Eles precisam evoluir também! Se você voltar, estará se prendendo a eles durante séculos, que serão tempos negros, entristecidos e ... pode ser que você leve milênios antes de livrar-se de tal situação! E não os estará ajudando, apenas prolongando suas penas, além de infringir a si mesma um carma terrível! 

-Anselmo me ama! Eu o amo também!

-Não é amor, não mais! Anselmo quer usá-la para poder voltar e continuar com suas maldades. Ele e Vivian. Sem a sua ajuda, eles não podem. Ficarão presos até que compreendam que necessitam morrer para renascerem e terem uma nova chance de evoluir espiritualmente. Ele agarra-se à existência física, uma existência de sangue, sonha com ela enquanto seria tão mais sensato morrer! Deixar-se morrer, libertar seu espírito...

-Mas eu nunca mais os verei!

-Se for amor o que os une, certamente vocês se reencontrarão, Ofélia!

Ao ouvir aquilo, Ofélia sentiu que uma nuvem pesada saía de seus ombros. Magda continuou:

-Eu vi suas vidas passadas também, Ofélia, eu sou médium. Aquelas crianças em volta de você, quando você morreu... sua própria mãe nesta vida, seu pai, e também sua ex-namorada... todas aquelas pessoas... são pessoas das quais você e Anselmo se alimentaram. Você teve que voltar com elas, resgatar suas dívidas. Quando fui sua mãe, eu também fui uma delas. Em uma outra vida, eu lhe fiz muito mal.  Somos todos heróis e algozes nas vidas que vivemos. Quando morremos como algozes, retornamos como vítimas, e depois, nos tornamos heróis na vida de alguém. 

Ofélia sentia o quanto aquelas palavras eram verdadeiras. Ofélia estava chorando, mas era um choro de alívio.

Magda segurou a mão dela:

-Vamos embora, não olhe para trás. Sabe que se entrar lá novamente, jamais conseguirá sair. Eles não a deixarão. Amanhã contratarei uma firma de demolição, e colocaremos a casa abaixo. Assim, libertaremos as almas deles. 

Ofélia olhou para trás. A silhueta da casa desenhava-se contra as nuvens brancas e esfiapadas e o azul profundo do céu. No jardim, maravilhoso e verdejante, pássaros cantavam entre roseiras e árvores frondosas.  Quem passasse por ali, não saberia que aquela linda casa estava cheia de energia pesada e negativa. 

Ela olhou para o rosto de Magda, aceitando-a como sua mãe amorosa. Assentiu com a cabeça, e as duas começaram a se afastar da casa. Após alguns metros, Ofélia olhou para trás novamente, mas tudo o que viu, foi uma velha casa de paredes escurecidas e em ruínas, no meio de um jardim seco e cheio de plantas mortas e retorcidas. 

Bruno viu que elas caminhavam juntas na direção dele, e sorriu enquanto elas se aproximavam pouco a pouco. 



FIM



sexta-feira, 19 de outubro de 2018

O Lar de Ofélia - Capítulo XVI





Ofélia despertou do seu transe momentaneamente, e olhou em volta; estava sentada no sofá da sala, e Anselmo segurava sua mão. A casa já estava obscurecida pelo crepúsculo, o que destacava ainda mais o clima de irrealidade: teria ela imaginado todas aquelas vidas, todas aquelas histórias? Será que aquele homem sentado ao seu lado não seria um embusteiro, alguém que estava brincando com ela, uma pessoa real, daquele século, que lhe dera algum tipo de droga que fizera com que ela imaginasse todas aquelas coisas?

Ofélia olhou para ele, e ao deparar com aquele olhar se entornando sobre ela, teve certeza de que suas suspeitas eram infundadas, e de que todas as histórias das quais se recordara, todas as vidas passadas que já vivera, eram reais. Tinham sido experiências verdadeiras. 

Anselmo sorriu-lhe, mas apenas com os lábios, pois ele jamais sorria com os olhos. Os olhos dele pareciam sempre tristes e cansados. Afinal, eram olhos que já enxergavam há muitas vidas, e já tinham visto muitas coisas e passado por sofrimentos terríveis. Ela entendeu o cansaço que via em seus próprios olhos, ao olhar-se no espelho, e o tédio que sentia quando estava junto de outras pessoas. Ela sorriu para ele de volta, e entendeu que aquela maneira triste de sorrir era também dela. 

Ele tocou-lhe a testa com a palma da mão, e ela fechou os olhos. Ao abri-los novamente, estava de volta àquela mesma sala, mas há vidas atrás. 

Viu-se indo deitar-se na noite em que Anselmo demitira Leôncio. Acordou assustada de repente, e tudo o que conseguiu ver, foi o próprio Leôncio debruçado sobre ela com o olhar maldoso (ou seria amedrontado?). Ele segurava um martelo e uma estaca, e antes que ela pudesse fazer qualquer coisa, ele fincou-a no coração dela. Ofélia lembrou-se de ter gritado, mas por um breve tempo apenas, e então tudo ficou escuro. Dali em diante, aquela vida apagou-se para ela. 

Novamente, ela teve a experiência de entrar por um túnel, mas daquela vez, ela foi cair em um local escuro e sombrio, como que desembocada ali, por onde outras pessoas atormentadas vagavam. Não sabe quando tempo passou ali naquele ermo e escuro lugar de sofrimentos, onde não tinha amigos e não era feliz. Ninguém seria capaz de ser feliz ali. Procurava por Anselmo e Vivian, e a falta deles doía-lhe a alma. Passaram-se anos - ou teriam sido apenas horas?

Novamente, ela abriu os olhos em um local iluminado, e viu o rosto bonito e sorridente de uma mulher que a embalava. Sua nova mãe. Era novamente uma mortal, mas aos dezessete anos, ela adoeceu por um longo tempo, e finalmente, após um período de muitas dores e sofrimentos, ela morreu. Renasceu ainda uma vez, mas também teve uma vida sofrida e curta, morrendo aos cinco anos de idade após sérios problemas de coração. Ainda assim, ela voltou. Viveu até os cinquenta anos de idade. Era uma mulher pobre, e com muitos filhos. Morreu sufocada, após contrair uma forte gripe. As suas crianças estavam todas em volta dela. 

Em todas aquelas vidas posteriores, ela teve a experiência de estar sempre triste, infeliz, vazia. Procurava por alguma coisa que jamais encontrava, mas agora ela sabia que tinha procurado por Anselmo e Vivian. mas eles tinham ficado em algum lugar bem longe dela. 

Nasceu novamente, agora em sua vida atual. Ofélia reviveu experiências que tivera com seus pais, e reconheceu outras pessoas que encontrara em outras vidas. Magda e Bruno estavam entre elas. 

Finalmente, Ofélia abriu os olhos novamente. A sala estava escura. Anselmo caminhou até o interruptor, acendendo as luzes. A pequena Vivian serviu-lhe um cálice de licor. Aquilo ajudou-a a recuperar as forças. 

-O que aconteceu naquela noite, Anselmo?

Ele suspirou:

-Naquela noite, Leôncio tirou você de nós. Consegui pará-lo antes que ele atingisse Vivian. Eu o transformei e o aprisionei nesta casa, e como castigo, dei-lhe uma aparência de velho e  a missão de guardar a casa para sempre, até que eu conseguisse trazer você de volta. Mesmo se ele tivesse tentado ir embora, não teria conseguido. Quando ele passava mais que uma ou duas horas longe da casa, sentia dores insuportáveis. 

-Como assim? E você... e Vivian...?

-Nós ficamos suspensos no tempo. Guardamos nossos corpos, pois fazemos parte de um clã, e eles teriam envelhecido sem sua energia. Eles estão escondidos  lá em baixo no porão, mas nossos espíritos estão livres, e por isso só você consegue nos ver. Por este motivo, é importante que você faça o que eu pedi. É a única forma de trazer nossos corpos de volta à vida. 

Ofélia ergueu-se do sofá, brandindo os braços:

-Eu... eu não posso, Anselmo! Você não entende? Não conseguiria!

Ele correu até ela, obrigando-a a olhar para ele:

-Minha querida, lembre-se de quem você é! 

Ela voltou a sentar-se. Sua mente dava mil voltas. Ofélia tocou a própria cabeça, pois esta lhe doía um pouco. 

-Aquele homem que nos vendeu a casa... ele era...

-Sim! Ele era Leôncio. Está livre agora. Seu castigo acabou. Mas nós ainda somos prisioneiros nesta casa, longe de nossos corpos, Ofélia. 

-Então me transforme para que eu possa ficar com vocês!

-Não é assim... não posso transformá-la sendo espírito. Preciso voltar ao meu corpo antes. 

-Mas... mas... eu não posso!

Existe uma coisa que você não sabe ainda, minha querida. 


Dizendo aquilo, Anselmo aproximou-se dela, colocando a mão aberta sobre sua testa. Ofélia teve uma visão. Ela viu Bruno. 

Reconheceu nele o homem que, em uma das vidas passadas, dos tempos antes de eles serem transformados, queimara a ela e à sua família vivos somente porque eles estavam doentes com a peste! 

Aquela visão encheu-a de dor. Ofélia começou a chorar compulsivamente.

-Viu, minha querida? Viu quem ele realmente é?

-Mas ele... não se lembra mais! Foi há tanto tempo, e ele... e nós... 

-Ele também tem um carma a pagar. Veja as coisas desta forma. Derramar seu sangue sobre nossos corpos será também uma libertação para ele. Se você não o fizer até a próxima lua cheia, jamais poderemos ser trazidos de volta, e nos perderemos para sempre uns dos outros... 

-E o que acontecerá então, Anselmo, a você e à nossa filha? 

-Permaneceremos no limbo, presos a esta casa, a este terreno... até que... até que... eu não sei dizer. Não sei o que acontecerá, mas acho que estaremos eternamente presos aqui. Mas você será livre para viver sua própria vida, concluir sua existência. Sem nós. Porque nós vamos desaparecer para você. Para sempre. 

(continua...)




segunda-feira, 15 de outubro de 2018

O LAR DE OFÉLIA - PARTE XV








Daquela forma, a família de Ofélia viveu por trezentos anos, mudando-se constantemente de um local do mundo para o outro a fim de evitar que as pessoas percebessem que eles jamais envelheciam, fazendo e abandonando amigos e inimigos, acompanhando de longe os fatos históricos para que não fossem jamais notados. Nada mais lhes faltava, e aqueles que antes tinham sido vítimas oprimidas do mal agora eram os opressores, escolhendo suas vítimas à dedo entre a escória da humanidade - criminosos que não tinham famílias ou que fariam muito mais bem ao mundo não estando nele, prostitutas ou mendigos de quem jamais alguém sentiria falta. 

Ainda se reuniam com os seus semelhantes, pois eram parte do clã, mas raramente, porque não aprovavam seus métodos cruéis, sua loucura maldosa. Evitavam a companhia deles, mas os semelhantes se atraem e se reconhecem. Ofélia estava feliz na companhia de sua família, estava feliz sabendo que nunca mais seria vítima da doença, da miséria e da fome, pois sua condição atraía sobre eles riquezas imensas, que ela não tinha certeza de como chegava tão facilmente a eles, e preferia não saber. 

Então, no ano de 1767, eles adquiriram a mansão cuja história contamos. Por ser afastada dos grandes centros, pensaram que poderiam estar seguros ali. Pretendiam passar ali talvez uma centena de anos, sem se envolverem em atividades sociais e sem se deixarem notar. Queriam férias do mundo. Contrataram apenas um único empregado, um rapaz de trinta e um anos a quem revelaram sua condição, e este prometeu guardar segredo se ele próprio fosse transformado. Seu caráter não era muito limpo; passara alguns anos na prisão por roubos e pequenos delitos; mas como ninguém dava-lhe emprego devido á sua falta de cultura e pelos anos que passara encarcerado, e como estivesse à beira de cometer atos que garantiam não apenas o seu sustento, mas também sua inevitável volta à prisão, Leôncio aceitou aquela proposta de trabalho. Seria responsável por pequenos reparos na mansão, e também pela jardinagem e outros funções menos nobres que lhe fossem delegadas. Para ele, tais funções não seriam problema.

Assim, a família viveu por muitos anos ainda, desfrutando dos confortos da mansão e também de tudo o que a riqueza lhes proporcionava; quando queriam ir ao teatro, bailes  ou a outros eventos para se distraírem, sempre o faziam nas cidades vizinhas, de modo que não estabelecessem conexões com as pessoas do local onde viviam. 

Leôncio, apesar de ter aceito as condições de ser transformado apenas após vinte anos trabalhando para a família (eles sabiam que assim que desfrutasse de seus próprios benefícios Leôncio os deixaria) estava começando a ficar impaciente. Queria poder, ele mesmo, ter todas as riquezas que o cercavam e as quais ele só podia invejar. Assim, certa noite, após a família retornar de umas férias em uma cidade longínqua, Leôncio os confrontou:

-Preciso que vocês me transformem.

Anselmo ficou surpreso, e lembrou-o do trato:

-Você ainda não está aqui por vinte anos, e este foi o trato. 

-Sim, mas... quero escolher a minha aparência eterna. Não desejo ser eternizado com a aparência de alguém que tem 50 anos! Quer se jovem eternamente, e não velho. 

Anselmo replicou:

-Não se preocupe. Ao sermos transformados, nossa aparência rejuvenesce imediatamente. Fique calmo, cumpra o trato e terá muito mais do que jamais sonhou.

Leôncio bufou de raiva, e respondeu em voz alta:

-E se eu disser que não desejo mais cumprir trato nenhum? E se eu for agora lá na cidade e contar a todos sobre quem vocês são? 

Naquele momento, Vivian ia passando e ouviu a ameaça. Entrou na sala segurando uma de suas bonecas, e rodeando Leôncio enquanto o percorria com olhar irônico, ela disse:

-Ora, tio Leôncio... mordendo a mão que o alimenta? Vou responder à sua questão no lugar de meu pai, propondo-lhe uma outra: E se nós o matássemos aqui e agora? Do que reclamaria, ou teria para reclamar? 

Anselmo repreendeu a filha:

-Minha filha, não somos desse jeito. Não diga mais isso!

Ela caminhou até o pai:

-Talvez o senhor tenha razão, e seja melhor que eu morra. Deixe-o ir até a cidade e trazer aqui todos os curiosos e caçadores de gente como nós, que nos trarão um fim! Ou então vamos por um fim nele!

Anselmo ficou preocupado com a reação da filha. Ele vinha notando que, com o passar dos anos, ela vinha se transformando em uma pessoa amarga, cínica e cansada de tudo. Temia que sua doce filha estivesse se transformando em uma daqueles que ele evitava por serem cruéis.

Em um canto da parede, Leôncio, assustado com as ameaças feitas pela menina, suava frio e não se atrevia a dizer mais nada. Ofélia entrou na sala, perguntando:

-O que se passa aqui? Qual o motivo de tanta gritaria?

Leôncio pediu licença, e com uma reverência de cabeça, retirou-se. Anselmo, sentado em sua poltrona enquanto observava a cena, nada disse. Mas Vivian respondeu à mãe:


-Nada, mamãe. Apenas uma insatisfação proletária passageira. 

Leôncio rolou na cama, e não dormiu naquela noite. Sua revolta e humilhação pesavam sobre ele. Ser afrontado pela pequena Vivian, a quem sempre tratara tão bem... estava cansado, e queria ter a sua vida de volta, queria... uma mulher! Queria poder escolher sua companheira eterna e transformá-la, e ela seria a mais bela mulher da vila, e após a transformação, ela o amaria para sempre, por absoluta falta de alternativa. Eles sempre permaneciam entre os clãs daqueles que os transformavam. A família de Anselmo passaria a ser também a sua família; a riqueza que ele tinha passaria a ser também sua. Nunca mais seria humilhado. 

Alguns meses se passaram, e ninguém mais tocou no assunto. Aos quarenta e cinco anos, Anselmo sentia o peso dos anos que passavam, e via seu rosto enrugar-se todos os dias. Aquilo o deixava desesperado! Mais ainda, sentia-se muito mal ao deparar, todos os dias, com seus patrões, sempre jovens e bonitos, e ricos também. 

Ainda faltavam muitos anos para que o trato fosse cumprido, e novamente, ele decidiu afrontar Anselmo. Aproveitou um dia em que Vivian e Ofélia estariam ausentes, e foi ter com seu patrão, que era bem mais maleável, mas daquela vez, de forma mais veemente:

-Sr. Anselmo, se não fizer o que peço, irei embora hoje mesmo. 

Olhando para ele com tristeza, Anselmo espondeu:

-Sinto muito, Leôncio. Acreditei em você e em sua palavra. Só me resta fazer suas contas e mandá-lo embora, e infelizmente, também teremos que partir desta casa que tanto amamos. afinal, você provou não ser de confiança. 

Leôncio esperou até que seu patrão reunisse a quantia que lhe devia - acrescida de mais alguns milhares, que ele decidiu pagar por conta própria, porque era um homem generoso - e retirou-se da casa. 

Quando Vivian e Ofélia retornaram, ele explicou-lhes o acontecido e disse-lhes que deveriam deixar a casa na noite seguinte, pois já amanhecia um dia ensolarado e quente, e a luz do sol forte podia ser fatal para pessoas como eles. A família recolheu-se aos seus quartos a fim de descansar, entristecidos por terem que deixar a casa. 

Ofélia, antes de recolher-se, percorreu toda a casa, parando diante do quadro da família que estava pendurado na parede da sala de estar. Ficou olhando para ele por um longo tempo, e teve um pressentimento horrível que causou-lhe uma imensa tristeza. Parecia-lhe certo de que algo aconteceria, e ela nunca mais veria sua família. Anselmo abraçou-a por trás:

-O que há, meu amor?

Ela agarrou-se a ele, chorando em seu peito:

-Eu não sei... tive um pressentimento...

-Está tudo bem, querida, lembre-se que ninguém pode nos fazer mal. Somos imortais!

-Sim, a não ser que...

-Shsh... Leôncio levará o dia todo até chegar à cidade, e quando lá chegar, já será noite, e teremos partido. Voaremos daqui para outro lugar e recomeçaremos nossas vidas. Onde está Vivian?

-Ela dorme. Também estou preocupada com ela. Você sabe, ela não é o que aparenta ser. Não é uma menininha... isto a está deixando amarga. 

-Eu sei, querida. Existe uma forma de fazer pessoas como ela crescerem alguns anos. Cuidaremos disso. Tentaremos achar o curandeiro que faz este procedimento. É que sempre achei necessário que ela fosse a nossa menininha para sempre... 

-Mas ela não é. Vivian é uma mulher.

Eles se beijaram. Sempre que se beijavam, Ofélia esquecia de todas as suas preocupações.

Mas não muito longe dali, Leôncio aguardava... planejava sua vingança... 

(Continua...)





quarta-feira, 26 de setembro de 2018

O LAR DE OFÉLIA - PARTE XIV







As outras vidas de Ofélia chegaram de repente, misturadas umas às outras; ela viu-se como um homem, pai de uma menina que reconheceu como sendo Anselmo, e estava casado com uma bela mulher maltratada pela dureza da vida, que reconheceu como Viviam. Os papéis se invertiam vertiginosamente. Em todas aquelas vidas, a existência deles tinha sido miserável, e eles morreram cedo demais, vítimas de maus tratos, pobreza extrema, doenças não tratadas, escravidão, fome e guerra. Seus papéis de pai/mãe/filho ou filha alternavam-se, e embora aquilo acontecesse rapidamente, Ofélia compreendia cada história e revivia a dor de cada uma delas. 
Até que chegando a uma daquelas vidas, o relógio do tempo começou a andar mais devagar, parando em uma determinada cena:

Era o ano de 1415. A família estava de pé no meio de um grande pátio ao ar livre, as mãos amarradas atrás dos seus corpos, tentando protegerem as retaguardas uns dos outros. O frio noturno era intenso e cruel, e seus lábios estavam roxos. Criaturas ricas e bem vestidas os rodeavam, observando e apontando. Ofélia era então a mulher, a mãe. Ela compreendeu que a partir daquela vida, tudo mudaria para eles. 

As pessoas se aproximaram, puxando Anselmo para mais perto deles e para longe dela. Os gritos de pavor não pareciam afetar aquelas pessoas de olhares frios e distantes; pelo contrário, deixavam-nas ainda mais sedentas e excitadas. Um dos homens deixou aparecerem suas presas, aproximando-as do pescoço forçosamente esticado de Anselmo, e fincando nele as presas afiadas, alimentou-se, passando- para os outros, que se serviram. Ofélia previa o terrível futuro próximo, impotente para proteger a sua pequena filha e a si mesma. 

De repente, ela ouviu ruídos de cavalos que se aproximavam, e vislumbrou uma armada ao longe. Homens carregavam tochas no meio da noite, e ela notou que logo estariam perto deles. As pessoas fugiram ao grito de uma delas, que dizia que a armada trazia estacas de madeira e estavam acompanhadas pelo Bispo em pessoa. Anselmo ficou quase morto no meio do pátio.

Depois que eles se foram, Ofélia pensou no destino de sua família: assim que aqueles homens chegassem, matariam Anselmo para que ele não se transformasse, e depois, deixariam ela e a filha à mercê do destino, se não decidissem matá-las também a fim de não deixar testemunhas. Com muito esforço, Ofélia conseguiu soltar-se e à menina, ajudando Anselmo a se levantar. Os três se esconderam atrás de um muro, sob um monte de feno, e Ofélia deu ordens para que Viviam não fizesse nenhum barulho, tapando com a mão a boca da menina. Os três ficaram escondidos ali, ouvindo a conversa :

-Eles se foram. Nós os perdemos mais uma vez!

-Acho que levaram suas presas com eles. Não há nem sinal deles por aqui. Vejam o sangue no chão!

-Se um deles foi mordido, precisamos encontrá-lo!

-Matem também os outros que estiverem com eles. Não queremos testemunhas causando pânico entre o povo.

Ofélia ouviu passos que se aproximavam do local onde se encontravam. Apavorada, ela conseguia escutar as batidas do próprio coração. Ela sentiu uma grande pedra solta sob sua mão, e teve uma ideia: sem pensar duas vezes, pegou a pedra e jogou-a com força para o outro lado do pátio, o que fez com que os homens corressem naquela direção. Enquanto isso, os três se embrenharam na escuridão e conseguiram fugir para a floresta, onde se esconderam sobre a copa de uma grande árvore até que os cavaleiros fossem embora. Ninguém sabia, na vila onde moravam, que eles tinham sido pegos, então seria seguro voltar para lá e continuar vivendo a vida como se nada tivesse acontecido.

E foi o que a família fez. Caminharam a noite toda e chegaram em casa ao amanhecer. As ruas ainda estavam vazias, e puderam entrar em casa sem serem vistos. Imediatamente ao chegarem, Ofélia fez o marido febril deitar-se na cama, despindo-o e lavando as roupas sujas de sangue imediatamente. Também fez com que a filha se aquecesse, acendendo o fogão e colocando um velho cobertor sobre os ombros da menina após fazê-la comer um prato de mingau de aveia. Ela também tinha fome e frio, mas havia coisas a fazer antes que pudesse, finalmente, descansar e comer. Lavou e estendeu as roupas de Anselmo junto ao fogo para secá-las; tentou fazê-lo comer, mas em seu delírio, ele jogou longe a tigela de mingau com um safanão. 

Três dias se passaram, e Anselmo só piorava. Ela disse à filha que não comentasse com ninguém sobre a saúde do pai, mas que se alguém na vila perguntasse por ele, que ela dissesse que ele tinha saído em viagem até a próxima cidade, onde venderia algumas peles. Ofélia sabia que Anselmo estava sofrendo a transformação. Sabia também o que aquilo significava: ela o perderia para sempre.

A não ser que pedisse a ele que a transformasse, e também à filha. 

Na noite do quarto dia, ela despertou e deparou com uma silhueta masculina velando seu sono. Era Anselmo, não apenas recuperado da febre, mas também com aparência saudável e forte, um homem transformado, realmente belo e com um forte apelo sensual. Ofélia sentiu um arrepio na coluna ao vê-lo daquela forma. Olhou para a menina magrinha, de aparência frágil e muito pálida que dormia aconchegada a ela, e vislumbrou também a miséria do cômodo onde viviam há anos. Anselmo murmurou:

- Tenho sede. Mas é uma sede estranha. 

Ofélia compreendeu que a transformação havia terminado, mas que ele ainda não tinha consciência de sua nova vida e aparência. Afastando os cabelos do pescoço, ela virou-se de lado na cama, e disse:

-Mate a sua sede, meu amor. Você agora é um deles. Transforme-nos também. Beba de nós, mas não até a última gota. Matará a sua sede, isto é certo, mas estaremos condenados a uma outra sede, que apesar de eterna, é a nossa única chance de sobrevivência. Mas se você não o fizer, teremos que nos separar para sempre. O tempo nos afastará, pois eu envelhecerei e morrerei, mas você será sempre jovem e forte. 

Ao ver a pele alva oferecendo-se a ele, Anselmo não teve dúvidas sobre o que deveria fazer, e obedeceu a esposa. 

Logo, em uma noite de lua nova, os três abriram as portas do casebre, e caminharam para fora, respirando o ar puro da noite, e prontos para recomeçarem sua nova e eterna vida. Os outros da sua espécie logo os encontraram, cuidando para que fossem recebidos entre eles. Grandes riquezas lhes foram dadas, e a família, que passou a ser respeitada por todos, tornou-se dona de um grande castelo em um país longe dali, onde se instalaram como ricos imigrantes

(continua...)




domingo, 23 de setembro de 2018

O LAR DE OFÉLIA - PARTE XIII





Não. Ela não seria capaz de fazer o que Anselmo estava lhe pedindo. Aterrorizada, Ofélia olhava a menina adormecida em seu colo, enquanto acompanhava emocionada o descer e subir daquele peito pequenino e ornado de rendinhas brancas. Não saberia mais viver sem a presença de Vivian. Precisava do som daquele sorriso pela casa, do som daqueles passos pequeninos correndo pelo pátio enquanto as duas brincavam no jardim. Precisava também daquele par de olhos que a fitavam do outro lado da sala, de pé junto à lareira. Precisava até mesmo daquele estranho brilho que eles emanavam e que causavam medo e fascínio ao mesmo tempo.

Mas ela não poderia fazer o que Anselmo estava pedindo a ela que fizesse. 

Se ele lhe pedisse que cortasse o próprio punho, ou que pusesse fogo na casa com ela dentro, Ofélia o faria; se ele tivesse pedido que ela se jogasse de cabeça pela janela, ou que ela se afogasse na piscina de água sujas que ficava nos fundos da casa, ela o teria feito de bom grado, e sem pestanejar; se ele tivesse  pedido a ela que se trancasse para sempre naquela casa, entre aquelas paredes, e ficasse lá até morrer de fome, ela o faria, se isso significasse ficar para sempre ao lado de seu marido e de sua filha. 

Mas aquilo, não. Ela não seria capaz. 

Ofélia colocou a menina adormecida no sofá da sala. Anselmo caminhou até ela:

-Nós não temos muito tempo, minha querida.

Ofélia desvencilhou-se daquele toque que tanto amava, caminhando até a janela, não tendo certeza de mais nada. Por um breve segundo, ela pensou que se ela se virasse de repente para olhá-lo, ele não mais estaria ali, e que tudo aquilo seria apenas fruto de sua imaginação. Como seria tão mais fácil se fosse daquela forma! Devagar, ela virou-se lentamente, e deparou com aquele par de olhos examinando sua alma. Anselmo era real. Ele estava lá, e pedia a ela que fizesse o inominável. Tudo em nome daquele amor e de sua permanência juntos. 

Anselmo caminhou até ela novamente, desta vez, segurando-a pelas mãos antes que ela pudesse fugir, obrigando-a a encará-lo:

-Ofélia, eu e Vivian precisamos de você. Nós temos que ficar juntos, mas só existe um jeito. Talvez você esteja tão amedrontada porque não se lembra mais de quem você realmente é, de quem nós realmente somos! 

Ofélia tinha medo de lembrar.

-Olhe para mim, minha amada! Sou eu, aquele por quem você disse ter esperado toda a sua vida! No fundo, você sabe! 

Ofélia olhou-o dentro dos olhos. O fascínio que ele exercia sobre ela era inebriante. Os olhos dele eram como lagos aonde ela mergulhava e afundava cada vez mais, e não tinha vontade de voltar à tona. 

-Você precisa desbloquear as suas lembranças... 

-Eu não posso, Anselmo. Eu... não quero!

Ela tentou fugir, mas ele a abraçou com força, fazendo com que deitasse a cabeça em seu peito. E ela se deixou ficar ali, aspirando o cheiro dele, sentindo o arfar do seu peito que subia e descia, mas não conseguia ouvir as batidas do seu coração. Achou aquilo estranho, mas o que não era estranho naquela história? 

-Ouça, Ofélia...

A voz dele soou dentro dela vinda do peito, como de uma caixa de som. Imagens começaram a se formar diante dos seus olhos fechados. Ofélia mais uma vez tentou fugir, mas Anselmo segurou-a firme. 

-Ouça e sinta, meu amor. 

Ela sentiu que entrava em um transe, e de repente, passava por um túnel negro raiado de cinza e roxo. Um tom azul surgiu em espiral, levando-a para o fundo, cada vez mais para o fundo. Ela fechou os olhos de medo, enquanto seus ouvidos zuniam cada vez mais alto. Ela teve vontade de gritar para que aquele som parasse, aquele zumbido hipnótico que a levava cada vez mais para o fundo de algo que não desejava ver. Quando pensou que não mais aguentaria, o silêncio atingiu-a feito uma parede, e Ofélia sentiu uma brisa fria em seu rosto. Abriu os olhos, mas não conseguia enxergar nada. A cor negra era aveludada e envolvente. Ela soltou um pequeno grito, e o som voltou para ela imediatamente, e Ofélia notou que estava dentro de uma caixa.

O pânico tomou conta dela enquanto ela erguia a mão, tentando abrir a caixa que a mantinha prisioneira. Felizmente, não precisou fazer qualquer esforço; a caixa se abriu sem nenhuma dificuldade. Ela olhou em volta: parecia estar no porão de algum castelo antigo. As paredes eram de pedra, e havia archotes iluminando o local. Através de uma pequena janela perto do teto, Ofélia vislumbrou a lua cheia em um céu azul-marinho. Uma coruja cantou lá fora. 

Olhou para si mesma: vestia roupas antigas, talvez medievais. Instintivamente, ela soube que era o ano de 1666.  Logo, Ofélia notou que estava dentro de um caixão, e sentou-se depressa, apavorada demais até mesmo para gritar. Jogou-se para fora do caixão, caindo no chão de pedra, mas surpreendeu-se por não sentir qualquer dor. Surpresa, ela percebeu que na verdade, nunca se sentira tão bem em toda a sua vida; sentia-se forte, e ao dar o primeiro passo, este foi tão leve que ela quase flutuou. Deu mais alguns passos pelo chão de pedra, e apesar de estar descalça, o frio não penetrou pelos seus pés. Ela passou a pular, e viu que não ficava ofegante, nem suava. 

À sua direita, Ofélia viu uma escadaria de toras de madeira que conduziam a uma porta pesada também de madeira, e ela pensou em subi-la. Simplesmente pensou em subi-la, e se viu flutuando escada acima. Ela sorriu, e o medo que sentia passou, pois viu que ele não tinha razão de ser: ela era a senhora daquele castelo. 

Agora, as memórias daquela vida voltavam rapidamente. Conforme Ofélia avançava, sentia-se cada vez mais segura sobre quem era naquela vida, e da influência ela sobre as pessoas que viviam naquele castelo. 

Ela empurrou a porta, e várias pessoas muito bonitas e bem vestidas que estavam reunidas em um enorme salão luxuosamente decorado e também iluminado por velas e archotes, onde conversavam, e dançavam, olharam para ela. Ofélia sentiu que os conhecia, e pouco  pouco, lembrou-se de todos os seus nomes. Reuniu-se a eles, como quem se une a velhos amigos que não vê há muito tempo. Ela estava feliz e tranquila. 

Um serviçal chegou com uma bandeja, na qual estavam copos dourados - seriam de ouro? Ela pegou um deles, dando um gole na bebida cor de vinho, que desceu pela sua garganta e fez com que seus sentidos se tornassem mais aguçados. De repente, Ofélia conseguia escutar uma coruja farfalhando as asas sobre uma árvore, e tudo o que tinha que fazer, era prestar atenção. As cores tornaram-se mais intensas, e Ofélia sentiu-se mais forte ainda. O líquido era quase pastoso, e tinha um sabor metálico. Não era delicioso, mas ao mesmo tempo, era a melhor coisa que já provara. 

Ela ouviu um grito, e olhou para trás. As pessoas também olharam, mas logo voltaram a conversar e rir. Ofélia viu uma jovem que era trazida até o centro do salão, levada por dois copeiros que a seguravam pelos braços. Apavorada, a menina relanceava os olhos para todos eles, tentando desvencilhar-se, mas os copeiros a mantinham presa sem dificuldades. Um deles puxou de uma grande faca , e enquanto o outro segurava o pescoço da moça, passou a lâmina sobre a pele de forma precisa, fazendo com que um jato de sangue espirasse e fosse imediatamente aparado por um terceiro criado, que o direcionou para dentro de uma jarra. 

Os convidados da festa se aproximaram daquela cena conversando normalmente, sem  qualquer sinal de surpresa ou exaltação, e quando a menina finalmente parou de se agitar e de gorgolejar, eles ergueram suas taças na direção da jarra, e foram servidos. Ofélia achou natural fazer o mesmo. 

Um vento forte começou a soprar, e Ofélia foi erguida no ar, saindo por uma das janelas do castelo e entrando novamente no túnel escuro, que a conduziu, daquela vez, a um belíssimo palácio. Ao passar pela fachada, ela leu a data na parede: 1879. Ofélia entrou pela parede, e encontrou as mesmas pessoas que estavam no castelo, em uma nova reunião. Ela juntou-se a eles, e notou que as roupas eram diferentes. Seu olhar dirigiu-se ao outro lado do salão, e ela soube de antemão o que iria encontrar: Anselmo a olhava. Ela compreendeu que fora ali que eles se conheceram. Ela olhou para dentro do copo que segurava, e viu o mesmo líquido grosso e vermelho. Imediatamente, ela soube, sem qualquer susto, que se tratava de sangue humano. 

O salão começou a rodar em volta dela. As paredes se moviam. Os rostos sorridentes se alternavam diante dela. Os sons de copos e brindes a deixavam tonta. Ela fechou novamente os olhos, insegura, e quando os abriu, estava em uma casa de fazenda. Ela sabia, porque conhecia bem o lugar. Em volta dela, as mesmas pessoas conversavam, mas as roupas eram diferentes, mais modernas - talvez tivessem sido usadas nos anos 20. Ofélia estava lá, entre eles. Ela mesma também estava ricamente vestida. Ela segurava Vivian pela mão. 

A mesma cena passada no castelo se repetiu. Uma menina foi trazida ao centro da sala, e igualmente sacrificada naquela festa, e seu sangue, servido entre os convidados. Ofélia viu a si mesma estendendo a sua taça. 

Mas antes daquelas três vidas, ela sentiu que houvera uma outra. Talvez, outras. E não tinham sido tão glamourosas. 



(continua... )




quinta-feira, 6 de setembro de 2018

O LAR DE OFÉLIA - PARTE XII





Bruno chegou ao portão da casa e olhou para dentro, através das grades pesadas de ferro. Há dias não via Ofélia. Ela simplesmente sumira de sua vida, e também recusava-se a atender às suas ligações. Ele esticou o pescoço, tentando ver os fundos da casa. Notou que havia marcas de pneus no caminho para carros arenoso. Bruno não teve dúvidas: as marcas dos pneus mostravam que um carro havia entrado lá, mas não tinha saído. Ficou preocupado com Ofélia. Tocou a campainha várias vezes, sem obter resposta.

De repente, ele ouviu um ruído distante de algo que se quebrava dentro da casa, talvez um objeto de vidro. Não teve dúvidas: escalou o portão e entrou. Ao tentar abrir a porta da frente, esta se encontrava trancada, então ele deu a volta na varanda que rodeava toda a casa, e olhou através das vidraças. Viu um pequeno vaso de flores no chão; por trás dele, do outro lado de onde ele se encontrava, havia uma janela aberta por onde o vento entrava, balançando as cortinas. Bruno descobriu o porquê do vaso estar quebrado. 

Correu ao outro lado, entrando na casa pela janela. 

Tudo estava silencioso. A casa, imaculadamente limpa, era um poço ameaçador de silêncio. A luz da tarde entrava pelas vidraças, mas nem mesmo a claridade amenizava aquela atmosfera de que alguma coisa pesada estava presente ali. Ele chamou por Ofélia; lá em cima, um farfalhar chamou sua atenção, e Bruno subiu até o quarto onde Ofélia costumava dormir. Ao chegar lá, mal pode acreditar no que viu:

Deitada na cama, Ofélia, de olhos fechados, estava muito pálida; tão pálida, que ele pensou que o pior pudesse ter acontecido a ela. Vestia uma camisola branca, e estava mais magra do que quando se conheceram. Assustado, Bruno sentou-se na cama, pegando a mão dela, que estava gelada, mas ele viu que ela estava respirando, e deu um suspiro de alívio. Bruno pensou nas histórias sobre a Bela Adormecida que sua mãe contava quando ele era ainda bem pequeno. Achou que se a beijasse, Ofélia despertaria daquele sono estranho. Assim ele o fez.

Aproximou o rosto do dela, beijando-a na boca levemente. Ofélia estremeceu, e abriu os olhos. Bruno sorriu para ela:

-Olá, Bela Adormecida! Se esqueceu mesmo de mim, hein? 

Ela esfregou os olhos:

-Bruno... o que você está fazendo aqui? 

Ofélia sentou-se na cama, mas sentiu-se tonta, e Bruno a segurou em seus braços. 

-Você está bem?

Ela concordou com a cabeça:

-Sim... acho que dormi demais... só isso.

-Ofélia... há quanto tempo você está aqui na casa, sozinha?

Ela respirou profundamente, desvencilhando-se dele e sentando-se na cama, as mãos segurando fortemente a beirada do colchão, e disse:

- Eu não lhe devo satisfações, Bruno. Só porque nós...

Ele a interrompeu:

-Você está muito magra e muito pálida. Há quanto tempo não come? Precisa comer alguma coisa.

Ela concordou com ele:

-E vou fazer isto agora mesmo. Vamos até a cozinha.

Ofélia calçou seus chinelos de pelo, macios e quentes, e agradeceu mentalmente por eles estarem ali. Ela sentia frio, muito frio; pegou sobre a cadeira o seu casaco, vestindo-o e aconchegando-se a ele. Bruno seguiu-a até a cozinha, enquanto Ofélia começou a preparar uma macarronada. Ela andava feito um zumbi, pegando os ingredientes nos armários e colocando os pratos, copos e talheres sobre a mesa.  Bruno notou que ela estava muito diferente - quase apática. Notou também os cabelos desgrenhados e a pele do rosto ressecada. Enquanto ela se movia lentamente pela cozinha, a luz do sol entrava pela janela e batia sobre a grande mesa de madeira. Bruno pensou que aquela seria uma cena bucólica, se não fosse a situação esquisita que ele estava presenciando. Tentou falar com ela novamente:

-Ofélia... eu senti sua falta.

Ela não o olhou, mas respondeu:

-Bruno, você precisa entender que o que tivemos foi passageiro. Bom, mas acabou. Não faz sentido. Não podemos ficar juntos. Você é anos luz mais jovem que eu, e além disso, eu não estou nem nunca estive apaixonada por você.

Ele se sentiu um idiota romântico. Entrara ali com ares de príncipe salvador, mas estava sendo repelido pela sua princesa adormecida. Zangado, ele disse:

-Ok, Ofélia, tudo bem. Se é assim que você quer... mas precisa me dizer o que está acontecendo. Você não está bem, e isso é gritante. Passou por muita coisa. Precisa conversar com alguém. 

-Mas não com você. 

Ela falava as coisas sem gritar ou expressar qualquer tipo de emoção. Não parecia a mesma pessoa que tinha feito amor com ele apaixonadamente. Não tinha mais aquele brilho de curiosidade e vida nos olhos. Bruno achou que a casa estava fazendo aquilo com ela. 

Segurando um feixe de massa de macarrão, ela o olhou pela primeira vez:

-Vai ficar para comer?

-Você está me convidando?

Ela encolheu os ombros:

-Acho que sim. Mas não pense nada além disso: é só um convite para almoçar. 

Ele riu, tristemente, e concordou com a cabeça:

-Eu aceito. 

Ela andou até o fogão, onde uma panela de água fervia, e colocou o macarrão dentro dela. Ficou olhando a água borbulhar e o macarrão afundar aos poucos. Bruno disse:

- Por que não se senta aqui um pouco, enquanto a massa cozinha? 

Ofélia sentou-se à mesa, diante dele, os olhos circundados por olheiras. Bruno pensou em estender as mãos e segurar as dela, que estavam sobre a mesa, mas desistiu da ideia. 

-Me diz o que está rolando, Ofélia. 

Ela o encarou, os olhos sem vida:

-Se eu te disser, vai achar que eu estou louca. 

-Não depois de tudo o que eu vi acontecendo nesta casa. Desembucha logo, vai!

Ofélia começou a contar a ele tudo o que estava vivenciando. Falou-lhe sobre seus encontros com Anselmo e Vivian, e do quanto aquilo a estava deixando confusa, pois ao mesmo tempo que parecia ser a coisa certa estar junto deles, ela não entendia o medo que sentia de, justamente, estar junto deles. Bruno escutou sem interrompê-la. 

Mais tarde, enquanto comiam em silêncio, ele disse com urgência:

-Você precisa sair desta casa. Precisa sair, Ofélia. 

Ela o olhou apaticamente durante algum tempo, antes de responder:

-Não. Preciso chegar ao final dessa história. Preciso entender o que Anselmo quer que eu faça. Eles são a minha família, Bruno, e eu quero muito poder estar com eles. Deus, você não sabe o quanto eu sentia a falta deles... e só descobri isso depois que eu os conheci. Depois que os vi de novo.

-O final desta história não pode ser bom. Pode ser o final da sua história! Venha comigo, vamos sair daqui! Se não quiser me ver mais, não tem problema; mas eu queria saber um dia que você ficou bem. 

Bruno percebeu que de nada adiantaria argumentar com ela; ele tinha perdido Ofélia para um fantasma. Desanimado, ele disse:

-Que pena, e que desperdício de vida. Você é uma bela mulher, tão cheia da grana... tem um futuro bacana pela frente... e fica aqui, presa a um fantasma! É lamentável. 

Pela primeira vez, ela demonstrou alguma emoção: fúria. Erguendo a voz, Ofélia gritou: 

-Não fale deles assim! 

Bruno largou os talheres e levantou-se:

-Se cuida, Ofélia. Se precisar de mim, sabe como me encontrar. Eu vou embora agora. Essa história me cansou. 


(continua...)







domingo, 2 de setembro de 2018

O LAR DE OFÉLIA - PARTE XI







Durante o dia, Ofélia andava pelos cômodos da casa, olhando em volta e tentando fazer com que alguma resposta caísse em seu colo. Às vezes, Anselmo ia vê-la, mas eram breves momentos.  Durante a noite, que sempre era muito intensa, ela passava suas horas em companhia de Anselmo e Vivian. Eram momentos muito intensos e felizes, e ela tentava não dar muita atenção, enquanto sentava-se com eles sobre o gramado do jardim e olhava para a silhueta da casa contra o céu estrelado, a alguma coisa por trás da razão que dizia que tudo aquilo estava errado, e que ela teria que acabar com tudo um dia.

Tentava dedicar-se a conhecer novamente sua filha e seu marido. Anselmo era um homem sisudo e sombrio, mas envolvente e apaixonante. Um homem misterioso, de sorriso enigmático, palavras econômicas e cheias de intensidade, olhar penetrante que variava entre amoroso e prescrutador. Ofélia sentia nele uma certa insegurança, às vezes. Um dia, ele confessou a ela que temia que ela não resistisse e descumprisse a promessa feita a ele há tantos anos. 

-Estamos ligados por um destino que é muito mais forte do que a morte, minha querida Ofélia. 

Quando ele dizia coisas como aquela, Ofélia sentia um aperto no peito. Tudo o que ela queria, era abraçar Vivian e não largá-la nunca mais, e estar com Anselmo. Gostaria de poder levá-los para o seu mundo e ficar lá com eles, mas Anselmo já lhe dissera que aquilo não era possível. Havia existências separando-os. A única maneira de estarem juntos, seria naquela espécie de limbo, onde o tempo jamais avançava. Ela perguntou:

-Você vai esperar até que a minha vida se cumpra, Anselmo? Para que assim possamos ficar juntos para sempre?

Ele apenas suspirava e a abraçava com ternura, mas nada respondia, até que um dia ele a olhou nos olhos:

-Você realmente não se lembra, não é?

Ofélia ficou confusa. Vivian que brincava ali por perto, parecia não estar prestando atenção À conversa deles. Ofélia sentiu as próprias sobrancelhas sendo franzidas, enquanto o rosto de Anselmo ia ficando mais tenso. 

-Não temos muito tempo, Ofélia. Este momento  é apenas temporário. logo, eu e Vivian teremos que partir, se você não cumprir a promessa que nos fez.

-Você me assusta, meu amor. Sempre me fala de uma promessa que eu devo cumprir, mas eu não me lembro dela! Não sei do que você está falando!

-É porque as existências, ao se sucederem, apagam as memórias. Mas elas estão aí, dentro de você, esperando para que você as acesse e se lembre delas totalmente. Você sabe do que eu estou falando, minha querida. E logo precisará tomar uma decisão muito importante. Você vai se lembrar de quem realmente é, e de quem nós somos. Você vai se lembrar de tudo. E terá que deixar de lado convenções e ideias pré-concebidas arraigadas à sua personalidade através das suas novas existências. Há muitos conceitos que terão que ser desaprendidos para que você possa estar conosco para sempre. 

- Mas... se eu passei por outras existências, por que o mesmo não aconteceu a você e à Vivian? Por que ficaram presos aqui?

-Porque esta é a única forma de ficarmos todos juntos novamente. Nós esperamos por você há tanto tempo, minha querida... 

Naquele momento, Vivian veio correndo em direção a ela, sentando-se em seu colo. Ofélia a abraçou, aninhando-a para que pudesse adormecer. Ela podia sentir o perfume de alfazema dos cabelos da filha. Aquilo era tão familiar! Começou a acariciar de leve a cabeça da menina, deixando que suas mãos escorregassem pelo bracinho da criança, que já começava a dormir. Foi então que ela viu a pequena marca no pulso da menina: uma tatuagem. Passou os dedos sobre o desenho, que estava em alto relevo. Era um símbolo desconhecido, dentro de um círculo. 

Anselmo ergueu a manga do casaco, mostrando a ela o mesmo símbolo tatuado em seu próprio pulso. Ele disse:

-Eu e Vivian cumprimos a nossa promessa. Esta tatuagem é o símbolo daquilo que fizemos, a nossa missão mágica, que nos trará enormes poderes. Mas a trindade deve ser cumprida. Você deve agir para que receba também esta mesma marca, minha querida, e então, nós três juntos, seremos invencíveis. Poderemos fazer coisas que você sequer imagina. 

Novamente, Ofélia sentiu um arrepio na nuca e um desconforto no plexo solar. Anselmo continuou:

-Vivian está ligada a nós por outras existências. Em outras vidas, nossos papéis foram invertidos - eu era a mãe, ela o pai, e você, a filha. Depois, você foi o pai, ela a mãe, e eu, a filha. Devemos cumprir este ciclo; devemos voltar novamente ao seu mundo, minha querida, novamente como somos: eu o pai, você a mãe e ela, a filha. 

Ofélia estava confusa, e não sabia o que dizer. Amava demais aquelas criaturas, e sentia que era amada por eles. Aquilo era tudo o que importava. Passara toda a sua existência presente sentindo-se deslocada, desconfortável na vida das pessoas que conviviam com ela e muito infeliz. Tinha sempre a sensação amarga de que não pertencia a elas, e não queria pertencer. 

Ela respirou profundamente; a menina adormecera. Olhou para o rosto dela, a pele tão clara e macia, os cabelos loiros, as pálpebras levemente rosadas. Sentiu a respiração da menina contra o seu próprio corpo, e amou-a ainda mais fortemente. Mas de repente, o rosto dela transformou-se no rosto de um homem adulto, e logo em seguida, no rosto de uma mulher. Ambos os rostos nada tinham daquela inocência e leveza; havia algo de muito ruim neles. Ela sentiu uma energia densa e pesada entrando dentro de seu corpo, e tal energia causou-lhe um mal-estar. 

Ofélia quase gritou, mas logo a inocência voltou ao rosto da filha, e ela pensou ter sido vítima de uma alucinação. Abraçou-a com força. Anselmo pôs a mão em seu ombro, e a mão dele pareceu pesada. 


(continua...)






terça-feira, 21 de agosto de 2018

O Lar De Ofélia - parte X






Depois que o corpo foi removido, Bruno se ofereceu para ficar um pouco com Ofélia, mas ela disse que precisava descansar; sentia um enorme cansaço físico e estava emocionalmente esgotada. Os vizinhos das casas abaixo da sua formavam pequenos grupos na calçada junto ao portão, apontando para casa e encolhendo os ombros. Ofélia os viu pela janela, quando Bruno saiu. Viu também quando ele parou e conversou com eles, provavelmente contando-lhes o que tinha acontecido na casa. Aos poucos, todos foram indo embora para suas casas.

À noite, Ofélia cerrou as cortinas e apagou as luzes da casa toda, exceto as do quarto que escolhera para dormir - e que agora ela podia, finalmente, após a morte do pai, chamar de seu quarto. Tomou um banho demorado de banheira, com direito a sais espumantes. 

Pensou nos acontecimentos daquele dia, e duvidou seriamente da sua própria sanidade. De repente, Anselmo e Vivian não passavam de um sonho, uma alucinação causada pela sua imaginação criativa. Passara muito tempo observando aquele quadro... mas... e quanto às coisas estranhas que aconteciam na casa? E quanto aos cômodos que eram magicamente reformados, assim que ela pingava sangue no chão? Quem poderia explicar aquilo? Ofélia achou que deveria buscar ajuda de um exorcista ou de um padre. 

Apesar de não gostar nada de Sarah, a namorada com quem seu pai se encontrava mesmo antes de sua mãe morrer, Ofélia não queria que nada daquilo tivesse acontecido a ela. Vê-la estatelada no piso da sua sala de estar foi uma cena chocante e desagradável, ainda mais quando ela fez questão de, antes de morrer, dizer a Bruno que ela - Ofélia- não era culpada de nada... mas será que não era mesmo? Afinal, fora ela quem trouxera Sarah até à casa! Fora ela quem seguira as ordens de Anselmo quanto a conversar com Sarah no alto das escadas; será que, inconscientemente, ela não tinha mesmo nenhuma ideia do que estava para acontecer? E se não tinha, porque sentira-se tão nervosa? 

Ofélia não era, e jamais seria uma assassina; pelo menos, era o que ela afirmava para si mesma. Mas ela também afirmara a Anselmo que faria tudo o que fosse preciso para que eles pudessem ficar juntos. E se isso incluísse matar pessoas inocentes? Até aonde ela seria capaz de ir para rever seu marido e filha? A saudade que sentia deles chegava a doer, de tão forte. A partir do momento que estivera na presença deles, reconhecera que sua vida não tinha sido nada antes daquele momento, e que toda a sua existência de antes era apenas um tempo no qual ela aguardara por aquele reencontro. 

A água tépida, o perfume suave dos sais de banho e a luz das velas fez com que ela adormecesse. 

Ao abrir os olhos minutos mais tarde, Anselmo estava sentado na beirada da banheira, olhando para ela. Seu semblante estava tenso e fechado, mas desanuviou-se aos poucos quando ela abriu os olhos. Ofélia estendeu a mão molhada e tocou a dele. Com os olhos, perguntou-lhe a razão de tudo aquilo que acontecer na casa naquele dia, e que faria com que ela tivesse que ir a uma delegacia na manhã seguinte, acompanhada de Bruno, para prestar depoimento. Sarah não tinha família, e ela pagaria pelas despesas com o funeral. Era o mínimo que podia fazer.

O cansaço de todo aquele dia morreu diante do leve sorriso de Anselmo. Ele virou a palma de sua mão para cima, segurando a mão dela, e ela sentiu-lhe o calor. De repente, tudo pareceu certo, e ela ficou tranquila, vendo suas preocupações se dissolvendo. 

Anselmo balbuciou:

-Foi preciso, Ofélia. Se quisermos ficar juntos, terá que ser assim.

O coração dela quase parou, falhando uma batida. Ofélia ergueu-se da banheira, pegando a toalha branca felpuda e enrolando-se nela. Anselmo ficou atrás dela, e afastou seus cabelos, cujas pontas úmidas escorriam água. Beijou-lhe o pescoço. E o coração dela quase parou novamente, mas por outro motivo. 

Nos dias que se passaram, Ofélia anunciou que tiraria férias do escritório, o que todos interpretaram como uma necessidade, depois de tudo o que ela estava passando - a morte recente do pai e de Sarah. Sérgio, o sócio de Rony, pensou em questioná-la sobre a casa, pois Rony e ele haviam concordado que ela precisava ser reformada e vendida o mais rapidamente possível, mas achou melhor deixar para uma outra hora; talvez pudessem conversar dali a trinta dias, quando ela disse que voltaria de suas férias. Ofélia pediu a Magda que comprasse passagens para o Chile e fizesse reservas para ela em um hotel agradável por lá, no qual ela e os pais costumavam ir quando tudo ainda estava bem. Ofélia achava melhor que todos pensassem que ela estava viajando. 

Mas ela ficaria na casa, disposta a desvendar todo aquele mistério.

(continua...)




A RUA DOS AUSENTES - PARTE 5

  PARTE 5 – AS SERVIÇAIS   Um lençol de luz branca agitando-se na frente do rosto dela: esta foi a impressão que Eduína teve ao desperta...